Os archotes ardiam, implacáveis, dentro da noite de ônix. Labaredas trêmulas lambiam o vazio absoluto. Dinossauros pastavam nas planícies onde o Nilo serpenteia, à margem das pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos. Na Mesopotâmia, os girassóis iriam florir no próximo milênio. Nabucodonosor sorria, no seu trono de jade e espanto, nos jardins suspensos da Babilônia, à sombra amena dos plátanos tristes. Já Ramsés dormia no sarcófago dourado, velado pelo olhar frio de múmias veneráveis, sonhando o largo périplo de Rá, Osíris, Ísis e Hórus – e talvez Amon. Moisés morrera há muito no alto do Monte Sinai, à vista da Terra Prometida, onde jorrava o leite e o mel. Da sarça ardente nenhum vestígio restara, além de algumas partículas de cinza, e do futuro urânio, sobre a terra. Pilatos finalmente conseguira curar a insônia, embora persistisse a sensação terrível de que as suas mãos continuavam sujas. Toda a água do Jordão, na bacia de prata, fora incapaz de lavar as nódoas indeléveis. Quod scripsi, scripsi. E o eco da voz do Messias infausto era levado pelos ventos que varriam o Arizona. Vinte séculos mais tarde, as explosões nucleares subterrâneas (ó insânia de Fermi e Oppenheimer!) germinariam docemente. Em Hiroshima e Nagasaki, duas orquídeas de fogo floresceram, em toda a sua glória. En Auschwitz, ao lado dos fornos crematórios, lírios brancos sorriam seu riso branco. Em Dachau, rosas de sangue. Nos arrozais do Vietnã, papoulas e crisântemos. E na Universidade de Tóquio, os netos dos mortos pela bomba aprendiam inglês com o sotaque de Boston, Princeton e Harvard.
Tudo isso ficara para trás. Todos os homens tinham partido. Em busca de que planetas longínquos, inúteis? Rumo a que galáxias estéreis? Simplesmente, haviam partido, com a surda esperança de colonizarem todas as estepes do cosmos. Sem risos e sem lágrimas. E nenhum papiro de sombra, nenhum pergaminho de névoa guardava o som das suas vozes, a forma dos seus sonhos, o timbre dos seus ideais. Teriam existido um dia, porventura?
Vindos de longe, talvez do fim do mundo, por caminhos que não passavam no Tibete, os quatro minotauros chegaram finalmente. Ninguém os esperava. No deserto havia apenas a sombra dos seus vultos solenes. Nas faces de bronze o tempo esculpira cicatrizes escarlates. Seus gestos eram lentos, medidos, rituais. Entreolharam-se. Então, o primeiro minotauro falou, com voz de gelo:
– Onde estão os homens?
Não houve resposta. Em vão as taquígrafas apuraram os ouvidos. O papel dos seus cadernos ficou em branco. Pois nenhuma palavra fora dita. E o segundo minotauro fez ouvir também o som metálico da sua voz antiga:
– Onde estão os homens?
E apenas o silêncio infinito fez ouvir a sua voz de tule e gaze e éter. Silêncio sem limites. Silêncio largo como os oceanos de turmalina onde os navios haviam naufragado outrora, quando os sinos ominosos do Apocalipse dobraram pela humanidade inteira, nos campos do Armagedon.
E o terceiro e o quarto minotauros, a um só tempo, em uníssono, numa sincronia perfeita dos movimentos dos lábios de púrpura, interrogaram também a distância e a solidão do universo:
– Onde estão os homens?
Nenhuma voz incólume ousou dizer a verdade. Nenhuma boca contou que os últimos homens estavam a caminho das estrelas de Asimov e Bradbury, rumo ao coração ígneo da Via Láctea.
E as quatro bestas voltaram à pergunta fatal:
– Onde estão os homens?
A esfinge de Gizé sorriu. Sorriu com uma leve ironia que os correspondentes estrangeiros, enviados especiais, não souberam decifrar. Com exceção do New York Times, que a considerou reacionária, e do Pravda, que a rotulou de provocadora. Mas alguém murmurou em surdina, para os seus botões: as vítimas do holocausto somos nós…
A esfinge continuou sorrindo seu sorriso de Gioconda, monalisamente. Por um segundo, por uma fração infinitesimal de tempo, deu a impressão de que iria falar. Dos seus lábios ficou suspenso um novo enigma, enigmaticamente críptico. Mas não chegou a cair. A esfinge continuou muda. E assim continuaria para sempre. Per omnia secula seculorum.
Foi então que os quatro cavaleiros invisíveis, com seus elmos incolores e suas lanças incorpóreas, se lembraram da gravíssima advertência de João, na ilha indescoberta de Patmos:
– Filhinhos, perseverai. Pois os tempos são chegados – e não vai ser mole… A múmia, histérica, gritou um palavrão. E os quatro minotauros sorriram uns para os outros, compreendendo o código. O primeiro disse apenas:
– Companheiros, são horas de voltar a Creta. O labirinto nos aguarda.
E perderam-se na infinita solidão do admirável mundo novo de velho Huxley. Foi aí que o sonhador acordou do seu sonho. E olhando pela janela aberta do seu quarto, pôde ver lá fora todos os seres imaginários de Borges pastando tranqüilamente o seu capim real, com um sabor indistinto de metáfora (sic).
João Manuel Simões é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.