Histórias precisam de tempo para virar história. Alguns pesquisadores falam em 20 anos, outros delimitam nos 30, mas o fato é que ela está lá, a barragem do futuro, determinando o que passa ou não à posteridade. Quando os anos puxados por 1980 chegaram, saindo dos 70, a música experimentou a mais radical ruptura de linguagem sofrida em gargalos geracionais. Tudo antes havia feito o giro com mais suavidade. Os 50 prepararam a chegada dos Beatles nos 60 por pelo menos seis anos, os 60 fizeram o mesmo pelos guitar heroes dos 70 e, depois dos 90, a fita passou a girar ao contrário.
Mas ali, no Brasil dos nos 80, a anti-ideologia de um País que saía de um regime tão socialmente nefasto quanto poeticamente inspirador faria crescer a anti-música, ou a música despudoradamente pop e feliz.
O jornalista André Barcinski saiu com a pá em punho para chegar às camadas mais profundas da era perdida, como muita gente chamou. Um lugar sem mais uma causa unificadora, com uma bomba detonada no meio da pista da discoteca chamada Aids e o surgimento do som estéreo sintonizado em frequência modulada nas rádios do País, as FMs. Sem mais a incumbência de soar como o fuzil da resistência, a música brasileira relaxou e captou o sentimento das pessoas que, depois de tanto tempo, queriam apenas amar.
A série que investiga esses fenômenos de massa surgidos nesse cenário reduzido muitas vezes à terminologia “brega” se chama A História Secreta do Pop Brasileiro, mostrada no festival In-Edit, em junho, e que será exibida a partir do dia 11 de outubro, no canal Music Box Brazil.
A “narração autoral” é feita por Arrigo Barnabé e a série é dividida em oito episódios. Eles são Os Clones (a história dos clones brasileiros de Trini Lopez, Dee D. Jackson e Genghis Khan); Falsos Gringos (como o pop brasileiro fabricou cantores estrangeiros que, na verdade, eram brasileiros, como Morris Albert, Mark Davis, Terry Winter, Don Maclean, Paul Denver e Chrystian); Os Carbonos (a história da banda de estúdio paulistana que gravou algo como 50 mil músicas em 30 anos de carreira, de É o Amor a Feelings); Discos Fantasmas (os discos covers vendidos como se fossem originais); Cantores de Estúdio (os vocalistas de apoio das gravações mais sublimes da época); A Explosão da Música Infantil (como os maiores hits infantis, da Turma do Chaves à Xuxa, passando por Balão Mágico e Trem da Alegria); Os Bailes (a cultura das domingueiras) e Mister Sam (com a história do argentino Santiago Malnati, um produtor visionário e nem sempre muito ético na construção de nomes como Gretchen, Nahim, Lady Lu e Black Juniors, de Mas que Linda Estás, de 1984).
O compositor Paulo Massadas tem grande espaço em pelo menos dois episódios, o da música infantil e o dos bailes. Ele fala de um tempo em que atuou ao lado de Michael Sullivan, formando a dupla mais produtiva de hits radiofônicos da década, finalizada por um desgaste mútuo, segundo Massadas.
Começando a conversa com a reportagem por telefone, dos Estados Unidos, onde vive, ele diz que não se produz mais passado como se produzia. É como se o tempo fosse uma chapa, linear. “A tecnologia proporcionou o surgimento de vozes sem nenhuma meritocracia artística. E deveria haver uma escada para se subir. A arte não deveria ser democrática, não é como tirar carteira de motorista.” Se hoje não há músicas de qualidade? Sim, há, mas… “Se você tivesse de escolher um prato de comida entre 1 bilhão de pratos, qual escolheria?”
Os anos 80 abriram um portal que não se conhecia. “As pessoas queriam brincar, queriam cantar, comemorar a vida, a volta da democracia. Percebi que poderíamos atuar aí, usar uma linguagem mais direta, mais aberta. Penso que Sullivan e Massadas não existiriam se a década fosse a de 60 ou de 70.”
Mas ainda assim, com cartão verde para criar trilhas infantis e sucessos de massa, havia um código sólido na música brasileira construído por décadas. Algo que, de repente, era ameaçado por dois rolos compressores que chegavam para talvez destruir a tradição poética e musical de Noel a Vinicius, de Caetano, Chico e Gil. “Sofremos uma perseguição de todos os lados”, ele lembra. “Eu sou fã de todos eles, mas senti que os artistas começaram a ter precaução com relação a nós, sabiam que estavam pulando um muro perigoso se nos gravassem.”
Depois que Tim Maia gravou Leva, em 1985, o preço das almas pareceu não ser tão caro assim e os artistas começaram a procurá-los mais. “Os artistas que relutavam a nos gravar vendiam 35 mil discos. Quando gravavam, a vendagem ia para 535 mil”, ele diz, sem dar nomes. Gal, Simone, Joanna, Fagner. Vendo hoje, pela fenda do tempo, o diabo não cobrou tão caro assim para fazê-los milionários.
Se Michael Sullivan e Paulo Massadas deram as letras e as melodias, Lincoln Olivetti deu o som. O produtor e tecladista morto em 2015, aos 60 anos, é lembrado com deferência imperial por muitos expoentes da geração de Massadas. “Ele era um gênio, só ele fazia aquele som”, diz o compositor.
Olivetti é quase um gênero musical em si. As músicas das FMs que surgiriam na década passavam por seu tratamento eletrônico seguindo uma tendência norte-americana de ecos, efeitos e teclados sobrepostos que marcariam uma fase a tal ponto de datá-la. E esse pode ser o problema. Ao mesmo tempo em que criou um som, ele criou também uma dependência auditiva. Se não tivesse o tratamento Lincoln Olivetti, não valia. Adeus violões folk, piano e voz, percussões acústicas. De repente, isso virou passado, coisa de bicho grilo da década anterior.
Lincoln recebeu Massadas como um parceiro. Pediu que assumisse o baixo mesmo sem saber tocar e formou com ele e Serginho futuro baterista do Roupa Nova uma banda. Quando o trabalho começou a ficar pesado, embalando músicas de Gal Costa, Gilberto Gil, Tim Maia, Jorge Ben, Rita Lee, Xuxa, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Marcos Valle, Maria Bethânia, Ângela Rô Rô, Zizi Possi, Fagner, Biafra, Sidney Magal, Wando e Joanna, a faca mudou de pescoço.
Se a estética Olivetti não atuou como um rolo compressor de sutilezas tornando tudo eletrônico demais, linear demais, igual demais? “Sim, mas o rolo compressor passava em cima dele também. O presidente da gravadora esperava que ele terminasse o disco na porta da gravadora. Esse som datado veio também dos Estados Unidos, se tornou uma marca daquele tempo. Ele tinha a magia nos dedos ao criar sonoridades que ninguém fazia no Brasil.”