A casa de Dona Marilia Freidenson guarda cem histórias por canto de parede. São quadros com retratos dos três filhos disputando espaço com imagens de netos, animais de estimação e louças antigas em uma sala inteira de flashback, guardando no espírito os dias em que abrigava até sessenta pessoas reunidas para ouvir e fazer música. Um homem que não está mais ali tem destaque especial. Jaime, sua paixão, a deixa de voz embargada e pensamento lento. “Ele era muito. Muito tudo.” Muito carismático, muito talentoso, muito delicado, lembra Marilia. E muito ousado, a ponto de colocar Vinicius de Moraes para sempre na família Freidenson.

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Marilia pede cuidado. O livro que ela abre sobre a mesa da sala da casa do Brooklin, na zona sul de São Paulo, foi um presente do próprio Vinicius, um mimo que o poeta guardou até resolver agraciar a mulher de Jaime. Poesie, nunca editado no Brasil, é uma compilação de luxo de cinco poemas seus, Pátria Minha, Poética, A Vida Vivida, O Mergulhador e Soneto do Amor Total, todos em português e italiano. Seu exemplar, de 10 de dezembro de 1969, é o número 1 de apenas 44 cópias. A publicação é italiana de capa branca e foi impressa pela Gráfica Romero, de Roma. Os poemas foram traduzidos para o italiano pelo poeta Giuseppe Ungaretti e entremeados por quatro gravuras em água-forte de Piero Dorázio.

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Georgiana de Moraes, uma das filhas de Vinicius com Lila Maria Esquerdo e Bôscoli, se diz surpresa. “Nunca ouvi falar. E é uma raridade, porque são poucos os títulos de Vinicius publicados assim fora do Brasil.” Maria de Moraes, filha do poeta com Christina Gurjão, tem na lembrança algo parecido com o que o repórter descreve por telefone. “Uma capa branca, com costuras vermelhas…” Ela indica que o jornal fale com a VM Cultural, que cuida dos interesses comerciais de Vinicius, e a empresa confirma ter em seus arquivos o número 15 da publicação, mas não tem mais informações.

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Autor da biografia Vinicius de Moraes, O Poeta da Paixão, lançada em 1993, José Castelo diz nunca ter tido conhecimento da publicação. “Para mim, é uma grande novidade, mais uma grande história que não está no meu livro”, diz, sorrindo. “Era comum fazerem tiragens de luxo de forma artesanal nesta época, era uma tendência entre os poetas.”

Se não tem asas, como o livro italiano de luxo de Vinicius foi parar nas mãos de Dona Marilia Freidenson, uma poeta paulistana que tem hoje 77 anos? A história vale outro livro. Seu marido, Jaime, morto vítima de um derrame em 1986, seguiu para a Bahia no final dos anos 1970 para instalar a parte elétrica da empresa Sibra, Siderúrgica Brasileira, em Salvador. Era uma semana lá, outra em São Paulo. Ou as duas lá, sendo uma delas em companhia de Marilia, que viajava para ver o marido. Jaime se encantou com a Bahia e começou a falar em morar por lá. “A Bahia é linda, mas morar?”, ponderou Marilia, preocupada com o estudo dos filhos.

A inspiração de Jaime foi mais forte no dia em que ele passava uma tarde em Itapuã, Salvador, em visita à casa da família Baldacci. Ali perto, um vizinho ilustre e todas as histórias que se contavam sobre ele chamavam atenção.

Vinicius de Moraes

“Será que ele quer vender a casa?”, perguntou Jaime a si mesmo. “Eu vou falar com ele.” Vinicius, em processo de separação de Gessy Gesse, sua sétima mulher, viu na chegada do paulista um salvador, conforme conta Roberto Freidenson, um dos filhos de Jaime. A impressão era de que resolvia um problema passando a casa adiante. Negociação fechada, a champanhe foi aberta com um carinho ao comprador. “Vinicius, minha mulher lá de São Paulo escreve poesias. Você poderia mandar um autógrafo para ela?” Inspirado, Vinicius buscou seu livro italiano e o entregou a Jaime. “Eu não acreditei quando ele chegou em casa”, diz Marilia.

Os Freidenson decidiram que Fernando, o filho mais velho, ficaria com a guarda do livro. E foi assim, até o dia em que as necessidades falaram alto e o peso de ouro da obra se tornou uma tentação. Às vésperas do casamento, Fernando precisava do dinheiro e procurou o bibliófilo José Mindlin para negociar um valor. Sorte que era Mindlin. O livro era uma preciosidade, alertou o possível comprador. “Mas, se puder não vender, não venda. Vai ser melhor para vocês.” Os irmãos de Fernando decidiram agir. O pianista Michel Freidenson e Roberto fizeram uma vaquinha, algo em torno de 5 mil dólares, e compraram a obra do irmão. “Foi uma forma de deixarmos o livro na família”, conta Roberto.

A casa de Itapuã abre outro capítulo na história dos Freidenson. Um endereço histórico na turismo baiano, a mansão em que Vinicius viveu com Gessy entre 1974 e 1977 foi construída em frente ao mar. Era frequentada por muitos artistas e foi onde nasceram algumas canções ao lado de parceiros. Os dois anos em que a família paulista viveu ali rendeu histórias. Jaime gostava de ficar na rede acenando para os ônibus que passavam longe com todos os passageiros tirando fotos de um homem que juravam ser Vinicius.

Gessy resistiu a sair. “Ela não queria deixar a casa”, lembra Marilia. “E quando saiu, tivemos de contratar um caseiro para que não voltasse.” “Eu fiquei por mais um ano porque fazia parte do acordo”, diz Gessy. A baiana está lançando o livro Minha Vida Com o Poeta, onde garante que estão muitas das histórias entre os dois, vividas na grande casa de Itapuã, onde hoje funciona um hotel e um memorial que preserva as esculturas, os azulejos e os objetos do artista plástico Udo Knoff, alguns devidamente criados em formato de nádegas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.