Madrugada do dia 6 de agosto de 1945. Tibbets olhou no relógio e viu marcadas 3 horas. Já vestido com o macacão de vôo o piloto estava mais curioso do que preocupado com aquela, diga-se, estranha missão.

Seu avião uma Super-Fortaleza B-29 já tinha sido carregada com o que lhe parecera um estranho artefato: não era muito grande, passava pelas portas de lançamento, era de cor preta, enfim, um cilindro meio diferente que portava, pareceu ao piloto, um detonador altimétrico como já vira antes.

Paul C. Tibbets era de uma família de classe média americana e mandara pintar no nariz da aeronave o nome de sua mãe: Enola Gay.

Assumiu o posto no assento esquerdo da cabina e afivelou o cinto. Seu co-piloto era um rapaz com quase sua idade e estava cumprindo as primeiras missões de combate. O navegador era um tipo sério de texano que trocava o capacete de vôo por um chapéu Stetson, de caubói. O bombardeador era um cidadão sizudo, o mais velho da tripulação. Tinha cara de fazendeiro do Kentucky. Tibbets tinha observado que, nos dias anteriores, seu avião fora objeto de atenções cuidadosas por parte da manutenção. Motores, comandos, instrumentos foram verificados detalhadamente; o “Enola Gay” parecia ter saído da fábrica e deveria voar com total segurança. *****

Keiko saiu da casa para o pequeno jardim fronteiro. Gostava de ver o jardinzinho antes de ir para o trabalho, no centro da cidade. Vestia o quimono doméstico e calçava “guetás”, os chinelos tradicionais feitos de palha e cordinhas. Os cabelos já estavam presos. A moça tinha especial carinho por um “bonzai” que estava na família a várias gerações, desde o bisavô, parecia, e dormitava num pedestal no canto do jardim.

Estava atenta a conversas que ouvia entre seus pais. Falavam em casamento, que era chegada a hora, a família precisava aumentar, manter a descendência. Comentara com o irmão Hiroiko. O jovem oficial do exército japonês, concordava com a idéia dos pais em relação à irmã. Quanto a ele, nada se falava. Os pais não interferiam naquele samurai moderno que era obediente ao “bushido”, o código de honra do guerreiro. Que decidisse por sua conta casar quando achasse chegada a hora e o dever.

Molhando as plantas com uma caneca d’água, Keiko cantarolava baixinho trecho de uma velha canção: “anatá omatebá ámega furu” a chuva caindo e eu esperando você. As treliças de madeira formavam a parede que deixava o sol passar, marcando o chão com triangulozinhos de luz. Keiko voltou para dentro da casa e olhou o relógio da sala, um luxo ocidental que seu irmão comprara de presente para os pais. Eram 7 horas e 20 minutos.

*****

Tibbets, com os olhos fechados, ouvia o som dos quatro motores que, como gatões mecânicos satisfeitos, ronronavam no ar frio daquela altitude. A máscara de oxigênio ajustada no rosto incomodava um pouco, mas era necessária. Ele olhou seu co-piloto. Com as duas mãos no manche parecia uma estátua, mantendo rumo a altitude. Com a mão enluvada, Tibbets fêz um sinal para o companheiro apontando o próprio ouvido. Ele entendeu. Dois motores estavam fóra de sincronia. O piloto segurou o manche enquanto o co-piloto regulava as rotações dos motores nas manetes. Agora sim, tudo certo.

Um pensamento passava pela cabeça de Tibbets. Fora informado de que o alvo era uma cidade de porte médio no interior do Japão. Era o endereço daquele artefato misterioso a bordo. Com a rendição da Alemanha no dia 8 de maio por quê o Japão ainda continuava sua guerra? Tibbets olhou para o relógio de pulso. Eram 7 horas e 20 minutos.

*****

– Keiko! Oninguiô-san! boneca.

A mãe a chamava para a pequena refeição que iniciava o dia. Seu irmão, fardado mas não equipado, já estava à mesa com o pai. O velho, com a pequena tijela entre as mãos, sorvia o caldo quente que oba-san a senhora havia preparado. Seus olhos tinham a côr baça que o halo senil marcava como um calendário vivo.

Keiko aproximou-se, sentando-se na almofada. Não usavam cadeiras, assim mandava a tradição. Com uma carinhosa reverência de cabeça, cumprimentou o velho pai e serviu-se de chá. Keiko, em pedido silencioso, solicitava de Buda que não lhe falassem em casamento àquela hora. Sabia que era um jovem da família Shiraiwa seu pretendente, mas agora não, não queria ouvir.

Estava quase na hora de, com sua bicicleta, seguir para o trabalho na cidade. Eram 7 horas e 45 minutos.

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Tibbets consultou o relógio. Eram 7 horas e 45 minutos. A voz do navegador veio pelo interfone: “Trinta minutos para o alvo!”

Entre os dois assentos da cabina, encostado à árvore de comando das manetes, havia uma sacola militar com óculos escuros, um para cada tripulante. O piloto imaginava para que serviriam. As lentes era grossas, escuras como jamais vira. A ordem era para usá-los 5 minutos antes da chegada ao alvo. Tibbets ajeitou-se no assento, esticou as pernas na direção dos pedais. O bombardeiro era uma imensa ave metálica cortando o céu azul e sem nuvens. Tibbets reduziu a rotação dos motores e começou a perder altura lentamente. Havia uma altitude marcada para o lançamento da bomba. O “Enola Gay” ia baixando, o “climb” indicava a perda de 2 mil pés por minuto em velocidade constante.

*****

Oba-san, a mãe, olhava a filha Keiko que se preparava para sair. Era contra a saia e blusa que ela usava. Onde já se viu? E a tradição? Ao mesmo tempo pensou em Keiko pedalando para o trabalho, de quimono. Suspirou, consolando-se. Logo ela se casaria e lhe daria netos que iriam fazer a alegria da casa, imaginava, já era tempo. O rosto da filha refletido no espelho parecia o seu próprio, quando jovem. A pele tinha a tessitura de pétala de rosa. Kirei, dessunê! bonita, não? falou oba-san de si para consigo. Tinha orgulho da filha assim como o marido tinha orgulho do filho que, no exército imperial, devotava sua vida ao imperador e à glória de sua pátria, com objetiva e digna inflexibilidade.

Passando pela sala para pegar a bicicleta, Keiko olhou no relógio. Eram 8 horas.

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“- Quinze minutos para o lançamento”.

A voz do navegador entrou seca e cortante pelo interfone. Tibbets viu o bombardeador debruçado sobre a mira Norden, calculando velocidade e altitude para o lançamento do artefato misterioso. Havia silêncio na cabina. A mão direita do piloto descansava sobre as quatro manetes de aceleração. O co-piloto, olhos fixos no painel de instrumentos, acompanhava a descida do B-29. Eram 8 horas e cinco minutos.

*****

Keiko viu quando o irmão, com um breve aceno tipo militar, despediu-se dela e subiu na viatura que viera buscá-lo. A moça examinava os pneus já um tanto gastos da bicicleta. Oba-san e o pai a olhavam da porta. Eram 8 horas e 5 minutos.

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Tibbets e o co-piloto colocaram os óculos o mesmo fazendo o navegador e o bombardeador. Eram 8 horas e 10 minutos. O piloto se lembrava vivamente da recomendação que lhe fizeram antes do vôo: imediatamente após o lançamento e, em curva para a esquerda, à plena força dos motores, afaste-se da área.

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– Cinco minutos para o lançamento!

A tensão aumentou dentro da cabina, as respirações estavam mais opressas que o normal naquelas horas. As mãos crispadas no manche, Tibbets segurava o “Enola Gay” na rota, absolutamente nivelado. O artefato não iria explodir em impacto contra o solo. Naqueles minutos finais da missão, isso era um detalhe que o intrigava. Eram 8 horas e 12 minutos.

– Três minutos para o lançamento!

Tibbets ajustou os óculos, motores em rotação de cruzeiro, deveria reduzi-los na Hora H, perdendo um pouco de velocidade quando sobre o alvo.

– Dois minutos para o lançamento!

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Keiko montou na bicicleta, acenando para os pais e começou a pedalar, passando pelo portãozinho e começando a descer a rua. Eram 8 horas e 13 minutos.

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Tibbets prendeu a respiração ao ouvir as portas do compartimento onde estava a bomba rechinando com a abertura, o vento enchendo a fuzelagem do avião, turbilhonando na cabina.

– Lançada!

A voz do bombardeador era calculadamente fria. Tibbets iniciou a curva para a esquerda, os quatro motores urrando na potência máxima. Eram 8 horas e 15 minutos.

*****

Keiko olhou para o céu, parou a bicicleta e desceu. Uma densa e luminosa bola de fogo descia sobre a cidade, um calor aumentando segundo a segundo, com um vento que fazia seu corpo arder como se estivesse em chamas. Ela caiu sobre a bicicleta, desmaiando e morrendo na espiral negra do Nada. Eram 8 horas e 15 minutos.

*****

Tibbets, afastando-se da área do alvo, olhou e viu um imenso cogumelo de fogo sobre Hiroshima. Seu grito ecoou dentro da cabina do B-29 numa pergunta que, até morrer, ele não encontrou resposta: Meu Deus! Que foi que eu fiz?!

(Wilson Silva é Jornalista e Escritor)

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