Algo fascinante está no ar. É Natal. A mídia mostra o Papai Noel com muitos pacotes em seu tradicional trenó ou descendo das nuvens até a árvore do presépio, no silêncio da noite de Natal, para ali deixar os presentes e alimentar, por mais um ano, a fantasia das crianças como alguém que vem de fora e que depois vai desaparecer por mais um ano. Emoção, luzes, festas, consumo, telefonemas, abraços, ceia… magia.
A movimentação do Natal envolve Jesus, Maria e José. Uma história que a Bíblia, especialmente Lucas (2,7) relata com desenvoltura: A criança precisa nascer, Maria e José não encontram hospedagem e vão para a estrebaria. Na noite fria, Jesus nasce, é depositado num cocho e esquentado pela respiração dos animais. Os pastores são avisados pelo anjo e os visitam; avisados pela estrela, Melchior, da Europa, Gaspar, da África e Baltazar, da Ásia, oferecem ouro, incenso e mirra ao Salvador que se encarna para redimir a humanidade do pecado.
Depois de muitos anos, o presépio é interpretado, talvez em 1223, quando São Francisco de Assis faz bonequinhos de barro, que representam Jesus, José e Maria, os pastores, as ovelhas, os reis magos, a estrela, para explicar o sentido do Natal. Em 1605, a primeira árvore de Natal é enfeitada em Estrasburgo (França) para dar sorte. Quanto ao Papai Noel, alguns acreditam que, na Idade Média, quando muitas crianças morreram vítimas da peste negra, Noé, personagem bíblico que salvou na arca os animais, volta e os distribui às crianças. Outros dizem que Nicolau, um bispo muito bom que viveu no século V, distribuía anualmente brinquedos e alimentos para crianças que estavam doentes.
Os símbolos do Natal, especialmente o Papai Noel, lembra o artigo escrito pelo antropólogo Lévi-Strauss, em 1952, denominado Papai Noel supliciado. Ele parte do enforcamento e queima de Papai Noel, em 1951, na França, acusado pela igreja de paganizar a festa de Natal; Lévi-Strauss passa ao questionamento de que razões teriam levado os adultos a inventá-lo; considera estar na presença da manifestação sintomática da rápida mudança dos costumes e vê no fato a ocasião de observar o crescimento de um rito, mais que isso, de um culto. Ele quer entender que transformações mentais e sociais ligam-se a tais manifestações.
Começa pela referência dos costumes que a França importa dos Estados Unidos (lojas com Papai Noel recebendo os pedidos das crianças, cartões de boas festas, etc.), observa que o Natal é uma festa moderna, mas que recompõe com peças e fragmentos uma velha celebração; a árvore de Natal surge de outros usos medievais e reúne, sincreticamente, árvore mágica, fogo, luz duradoura e o verde persistente. Elementos antigos são mesclados e recombinados. Por que a animosidade de alguns indivíduos se concentra no Papai Noel? Ele não é um ser mítico, nem personagem de lenda, mas descende da família das divindades, retorna periodicamente e recebe culto por parte das crianças. Recompensa os bons e exclui os malvados. A diferença em relação às divindades é que os adultos não acreditam em Papai Noel.
Lévi-Strauss faz então um paralelo entre o Papai Noel e os katchinas dos índios do sudeste dos Estados Unidos. São personagens mascarados que encarnam deuses e ancestrais. Lévi-Strauss diz que ocorre um deslocamento mítico. Mitos e ritos de iniciação ajudam os mais velhos a manter os mais novos na obediência. No decorrer do ano, invoca-se a visita do Papai Noel para premiar o bom comportamento das crianças, disciplinar as reivindicações infantis com a distribuição de presentes, reduzindo a um curto momento o seu direito de exigi-los.
A explicação utilitária não dá conta de expressar como os direitos das crianças se impõem aos adultos de tal modo que precisem criar todo um ritual para os limitar. A crença na figura do Papai Noel é o resultado de ?transação? onerosa entre duas gerações. Lévi-Strauss destaca um aspecto do rito de iniciação. Os índios mantêm as crianças na ignorância quanto a quem são os katchinas. Na verdade, substituem as almas das primeiras crianças indígenas que se afogaram em um rio há muito tempo. Eles tanto são prova da morte como da vida depois da morte. Seu mito relata que eles, após visita na aldeia, levavam crianças. Então os índios prometeram representá-los anualmente com máscaras e danças. As crianças ignoram quem eles são, mas elas mesmas são os katchinas.
Lévi-Strauss explica que a não-iniciação não é a ignorância. Iniciados e não-iniciados têm relação complementar, pois um grupo representa os mortos e o outro grupo representa os vivos. No transcorrer do rito invertem-se os papéis.
Ao fazer o paralelo entre os katchinas e o Papai Noel, Lévi-Strauss chama a atenção, entre outros aspectos, para o fato de que existem formas de pensamento e conduta que dependem de condições mais gerais da vida em sociedade. Manter intacto o prestígio de Papai Noel junto às crianças é uma forma de os adultos crerem em uma gentileza desinteressada, em um intervalo em que se suspendem temor, inveja e amargura. ?A crença que incutimos em nossas crianças, de que os brinquedos provêm do além, oferece um álibi ao movimento secreto que de fato nos incita a oferecê-los ao além sob pretexto de os ofertar às crianças. Por este meio, os presentes de Natal permanecem um sacrifício verdadeiro à doçura de viver, que consiste, antes de tudo, em não morrer.? (Lévi-Strauss, 1952). Ao crerem em Papai Noel, as crianças ajudam os adultos a crerem na vida.
Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná zeliabonamigo@uol.com.br
