A primeira missiva é assinada apenas por “José”, foi escrita em Lisboa e tem como data dezembro de 1992. E a última foi enviada justamente de Salvador, com assinaturas de quase toda a família: Jorge, Zélia, Paloma. Era o dia 8 de outubro de 1998, exatamente quando aquele José, o Saramago, foi anunciado como primeiro autor em língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura.
São poucas linhas, mas reveladoras da intimidade cultivada entre os dois escritores, especialmente no assunto que sempre lhes interessa: prêmios literários. Essa troca de confidências e de agrados compõe o livro Jorge Amado e José Saramago – Com o Mar Por Meio, que reúne uma seleção da correspondência trocada entre eles. O lançamento oficial acontece às 21h de sexta-feira, 28, na Casa José Saramago, em Paraty, durante a Flip, que será aberta no dia 26.
O projeto nasceu depois de uma série de boas coincidências. Em Salvador, os pesquisadores da Fundação Casa de Jorge Amado, onde repousa o acervo do autor baiano, estavam digitalizando justamente as cartas enviadas por Saramago com a intenção de publicar um livro quando Pilar del Río, mulher do escritor português, propôs de as duas famílias montarem uma casa na Flip, onde se discutisse essa troca de cartas.
“Foi uma explosão de alegria”, conta Paloma Amado, filha de Jorge. “Escrevi para Pilar sobre o livro que estávamos preparando e logo o projeto estava criado.” Paloma e Pilar, aliás, assim como Zélia Gattai, viúva de Amado, são figuras constantes na conversa epistolar entre os dois grandes autores, que se conheceram pessoalmente já em idade avançada – foi em 1990, quando ambos participaram, em Roma, do júri do prêmio da União Latina. A amizade se intensificou no ano seguinte, quando voltaram a ser jurados. Tanto Amado como Saramago lutavam para que o prêmio fosse para um escritor de língua portuguesa.
“A amizade com Jorge Amado começou aí, pelejando, ombro com ombro”, observou Saramago em um texto escrito em agosto de 2012, por ocasião da morte do baiano. Foi a primeira das inúmeras afinidades que logo os dois descobriram compartilhar. Nascia uma amizade rara em um meio no qual a competição dita, muitas vezes, as relações. “Eles compartilhavam o mesmo espírito de generosidade”, atesta Paloma.
“Eram duas pessoas que, diante do protocolo social que inibe as relações humanas, praticavam a saudável naturalidade”, completa Pilar. “Capazes de rir, donos (ambos) de um grande sentido de humor, de ironia – e também da autoironia -, estavam destinados a se entenderem. Se encontraram tarde, mas as longas conversas que mantiveram não deixaram recantos a explorar. A cordialidade que demonstram nas correspondências é uma mostra de como podem se tratar, e se tratam, as pessoas livres e sem preconceito.”
Como foi alimentada nos anos 1990, a correspondência utilizou a forma mais rápida de comunicação da época, o fax. Assim, é curioso como ambos escritores comentam ter enviado seus textos para aparelhos localizados em diversos endereços de cada um – Salvador e Paris para os Amados, Lisboa e Lanzarote para Saramago. Em um determinado momento, aliás, Amado comunica a hilariante justificativa para a demora de uma resposta por causa das chamas que inesperadamente destruíram seu fax, que se assemelhou a um vulcão.
Escritores consagrados, Saramago e Amado revelavam um certo desinteresse por prêmios literários, notadamente o Nobel e o Camões, mas, na intimidade das cartas, demonstravam apreensão constante e trocavam ironias quando novamente se viam como perdedores. “Ainda não será desta vez que iremos, os quatro, a Estocolmo festejar o Nobel de José: um japonês (Kenzaburo Oe) nos atropelou”, escreveu Jorge, em 13 de outubro de 1994.
De fato, havia entre ambos uma convicção e um pacto: a de que o outro seria o primeiro escritor em língua portuguesa a faturar um Nobel e que os dois casais festejariam juntos a entrega do prêmio, na capital sueca. “Quando se aproximavam as datas dos prêmios importantes, os dois se sentiam massacrados pelas perguntas dos nossos colegas jornalistas ou pela intuição dos amigos”, observa Pilar. “Eles diziam, que se não recebessem prêmios, iam decepcionar muita gente… E disso faziam piada: ‘Condenados por não ganhar, que irônico’, diziam. Evidentemente, para eles o importante era fazer o trabalho bem, não que a instituição A ou B lhes fizessem uma distinção. Os prêmios nunca estão a mais, mas não é o objetivo de quem escreve, obviamente. Ou pelo menos não era o deles.”
Paloma conta que Jorge tinha a certeza de que jamais ganharia o Nobel, mesmo sendo indicado por diversas entidades de todo o mundo por mais de 30 anos seguidos. “Ele dizia que havia escritores mais velhos (e com idêntica opção política) à sua frente, portanto, com mais chance. Mesmo assim, o mês de outubro era sempre infernal em nossa casa, porque as pessoas praticamente cobravam o prêmio dele.”
Entre os comentários, há destaque para momentos deliciosos, como a forma até zombeteira com que ambos falavam sobre outro português, António Lobo Antunes, tido como desafeto de Saramago. Em uma carta, Jorge conta que um jornalista brasileiro que vive no exterior confidenciou que era certa a vitória de Antunes. Mais adiante, surgem rumores de que o pretenso vencedor já estaria em Estocolmo, como se isso fosse necessário no dia do anúncio.
“Todos nós temos preferências de escritores também e, às vezes, os amigos coincidem no que gostam e no que não gostam”, comenta Pilar. “A verdade é que brincavam sobre os desafetos, que eram mais de manchete de jornal que pessoais. Se nota muito que eles brincavam com a bola colocada em jogo por alguém, mas que não era nada a sério.”
O certo é que Saramago sairia vencedor, em 1998. “Na época, papai vivia fechado em si, pesaroso pelo enfarte e, principalmente, pela perda da visão”, lembra Paloma. “Jorge ficava em seu cadeirão, de olhos fechados. Quando José venceu, contei para ele, que imediatamente abriu os olhos. Vamos telefonar para eles, vamos escrever um fax, dizia, eufórico. Ele também redigiu uma nota que distribuímos para a imprensa e ainda nos fez comemorar com champanhe. Foi lindo, mas, no dia seguinte, voltou ao seu mutismo, de olhos fechados.”
Pilar del Río acredita que a divulgação dessas cartas e bilhetes promove uma aproximação dos leitores com a obra dos dois autores. “Nos romances que escreveram, estão os seres humanos que eles foram. São obras acabadas, mas essa correspondência mostra o dia a dia, formas de conexão, intercâmbios de opiniões, que depois se ampliariam nos encontros que eles tiveram em Paris, Roma, Madri, Lisboa, Brasília ou Bahia. Não são cartas escritas com vontade de publicação, são manifestações que desprendem a espontaneidade de duas grandes pessoas, que nem um mar pelo meio, consegue domesticar.”
Pilar lembra ainda que Amado e Saramago usaram o próprio prestígio para valorizar a literatura em língua portuguesa, especialmente durante as fases de ditadura sofridas por Brasil e Portugal, o que provocou, entre outros muitos estragos, o ocultamento das literaturas nacionais.
“As ditaduras são horripilantes para todos e tudo, também para a criação e a expansão do que foi criado”, diz. “Em Portugal, os escritores que viveram a maior parte da vida sob a ditadura sofreram o sufoco e a impossibilidade de cruzar fronteiras e chegar a outras. Essa injustiça que tantos sofreram também foi vivida, na carne, por Jorge Amado e José Saramago. Por isso, foram sempre tão generosos com escritores, fazendo prólogos de livros, conferências sobre outros, apresentando livros, formando parte de júris internacionais, dando o nome a prêmios, e, sobretudo, compartilhando. Na entrega do Nobel, José Saramago dedicou o prêmio aos escritores em língua portuguesa, os contemporâneos e os do passado, porque ‘é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio a juntar’.”
COM O MAR POR MEIO
Organização: Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel
Editora: Companhia das Letras (120 págs., R$ 59,90 versão impressa, R$ 39,90 e-book)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.