A voz era mais rouca que em “Helter Skelter”, sem os agudos de “Oh, Darling” nem a adolescência de “A Hard Days Night”. A gentileza na entonação soava a “Hey Jude”, mas algum cansaço remetia a dias de “Let It Be”. Uma vida inteira em uma frase dita às 13h35 da última quarta-feira, 20, no momento em que o homem mais popular do planeta apanhou o telefone do assessor em seu escritório no Soho Square, em Londres, para falar com o jornalista antes de sua próxima vinda ao Brasil: “Olá, eu sou Paul McCartney”.
Os shows em São Paulo serão dias 26 e 27 de março, no Allianz Parque. Um terceiro será em Curitiba, dia 30 de março. Chile e Argentina também estão no roteiro. Paul começou a turnê “The Freshen Up Tour” menos de um ano depois de terminar a anterior, “One On One”, uma temporada quase grudada a “Out There! Tour” (2013 e 2014), que veio na esteira de “Up and Coming Tour” (2012-2013), que havia entrado no bonde seguinte a “On The Run Tour” (2011-2012).
A sequência parece cansativa para um senhor que, embora teorias sustentem o contrário, se trata de um ser humano. “O que explica isso, Paul? Aos 76 anos, amigos seus já estão em casa brincando com os netos. Não seria por dinheiro, certo?” Segundo o jornal The Sunday Times, Paul segue sendo o artista mais rico do Reino Unido, com 780 milhões de euros, algo como R$ 3,2 bilhões.
“Não, não é pelo dinheiro”, ele sorri. “Sabe, eu gosto das grandes plateias, estar com os fãs pelo mundo me dá energia, e ainda consigo passar um bom tempo com meus netos. É possível viver as duas coisas. Se eu fosse um pintor, gostaria de continuar pintando por toda a vida. Você está certo, eu não tenho que fazer isso o tempo todo, mas é só o que eu sei fazer desde garoto.”
Ao mesmo tempo que os brasileiros ficam felizes com sua vinda, uma multidão de fãs que não podem pagar pelo ingresso lamenta. Os preços dos bilhetes são bem caros no Brasil. Não seria a hora de fazer uma apresentação gratuita por aqui?
Sabe que uma vez, há poucos anos, fizemos um concerto e liberamos sua transmissão para a TV no Brasil, se não me engano, para uma emissora chamada Globo. E então, até mesmo as pessoas que viviam nas pequenas vilas conseguiram ter acesso ao show. Às vezes, fazemos esse tipo de coisa. Já cantei assim em Roma para mais de um milhão de pessoas nas ruas e, no México, para umas 500 mil. Seria ótimo conseguir o mesmo no Brasil.
O mundo parece dividido hoje entre esquerda e direita, como se nenhuma ideia pudesse se encaixar em outra definição. O rock and roll, curioso, já foi acusado dos dois: direita, alienando os jovens, e esquerda, tornando-os rebeldes. Os Beatles eram de esquerda ou direita?
É uma pergunta difícil, mas acredito que os dois. Eu não acho que nos tempos de Beatles fazíamos distinção entre direita e esquerda, não era nosso interesse assumir um partido, uma ideologia. Estávamos mais preocupados em sermos sensíveis. Se lutar pelos direitos humanos é ser de esquerda, então digam que éramos de esquerda. Se fazer músicas que falavam de amor e de família era algo de direita, podem dizer que éramos de direita.
Ainda hoje, John Lennon é considerado por muitos o rebelde da banda e você, o conservador. Existe algo de certo nessa percepção?
Acho que, de alguma forma, sim. Mas o que aconteceu foi que as pessoas interpretaram a história de muitas formas. Às vezes, eu me tornava um homem de direita conservadora e, em outras, eu era a esquerda, fazendo algo revolucionário. E foi assim também com John. Poucos viam, mas ele também podia ser bem “right wing” (de direita). Eu tive algumas experiências que mostraram que não devemos julgar alguém tendo como base apenas um período de sua vida. Os dois lados conviviam nos Beatles, e é por isso que conseguimos falar com todo mundo.
Seu disco mais recente, “Egypt Station”, traz uma história que se passa no Brasil na música Back in Brazil. Uma parte soa como crítica social quando diz que a garota sente medo e que “a esperança começa a desmoronar e seus sonhos, a desaparecer”. Você quis dizer algo?
Essa música narra uma história de amor, como se fosse um filme, e não pensei em outra coisa quando a fiz. Mas gosto quando a canção abre portas para outras interpretações. Se você quiser, pode sim levar isso para esse entendimento, acho ótimo.
Vai tocá-la no Brasil?
Estamos ensaiando, não sei se teremos tempo de aprendê-la até lá. Espero que sim.
Paul, qual seria a sua banda dos sonhos? Não vale colocar ninguém dos Beatles, Ok?
Ah, ok, deixe-me ver. Na bateria: John Bonham (baterista do Led Zeppelin, morto em 1982). Nos teclados… Billy Preston (músico que toca órgão em “Let It Be”, morto em 2006). No baixo (faz silêncio): John Entwistle (baixista do The Who, morto em 2002). Na guitarra, Jimi Hendrix (morto em 1970). E no vocal, Elvis Presley (segundo Paul, o imortal).
Sua voz às vezes parece cansada nos shows e você tem alguma dificuldade em chegar a algumas notas. Está ficando difícil fazer apresentações com três horas de duração?
Em que momento você acha que minha voz fica cansada?
Ah, em momentos mais agudos de canções como “The Long and Winding Road”, “Oh, Darling” ou no final de “Hey Jude”, por exemplo…
Paul faz aqui um rápido silêncio e, então, solta um grito com a nota mais aguda que parece capaz de atingir, de doer os tímpanos do repórter. Em seguida, ele canta o começo de ‘Oh, Darling’ com a mesma força. Para, respira e pergunta: Que tal?
Ok, acho que pode colocá-las no repertório (risos). Paul, você tem uma música no disco novo, “Despite Repetead Warnings”, que fala de um capitão de um navio que, sem se preocupar com as advertências do aquecimento global, caminha para o fim com sua tripulação. O presidente do Brasil, neste momento, é coincidentemente um capitão com inspirações em Donald Trump, o homem a quem você dedicou sua música.
Eu não sei o suficiente sobre seu novo presidente para fazer comentários, mas, geralmente, olhando para o mundo, há um infortúnio no ar. Muitas pessoas estão assustadas, com medo, e uma grande preocupação nas Américas e na Europa tem relação com a questão dos imigrantes e dos refugiados. É muito fácil dizer: “Hey, eles vão roubar nossos empregos”. Mas, se você olhar para os Estados Unidos, verá que todos ali são imigrantes, cada ser na América de hoje é um imigrante. Eu vejo nações sendo construídas com pensamentos de antissemitismo e políticas anti-imigratórias. Não posso falar do Brasil, mas vejo claramente a ascensão de políticos que causam medo.
Roger Waters foi vaiado no palco ao falar sobre suas convicções políticas e uma questão apareceu ali. O que vale? Estar ao lado dos fãs que pagam para vê-lo ou ao lado do que você acredita ser a verdade?
Sempre ao lado do que você acredita. A situação política em muitos países está difícil, e aqui no Reino Unido não é diferente. Estamos passando por grandes mudanças na América, Itália, França, Alemanha. É tempo de falarmos a verdade.
Como você lida com a própria história? O tempo todo saem biografias, documentários, filmes. O que faz quando lê ou vê algo surreal sobre si mesmo?
Eu sempre leio coisas surreais e sem noção sobre mim mesmo. As pessoas escutam uma versão e a repetem sem nenhuma evidência. A história é inteiramente baseada nisso. Eu prefiro muitas vezes não ler, mas quando leio escrevo para o biógrafo e digo: “Hey cara, isso é completamente irreal”. Li alguns trechos de um livro novo sobre mim e a história estava completamente errada. O meu tempo é muito precioso para eu me aborrecer com as coisas que eles escrevem.
O fim dos Beatles foi precoce ou eles acabaram no tempo em que tinham de acabar?
Os Beatles foram uma grande banda, tocaram pelo planeta e poderiam muito bem estar tocando agora. Infelizmente, houve um fim. Aquela foi a melhor banda do mundo e eu tenho certeza de que, se estivessem todos vivos, estaríamos na estrada ate hoje.
Um dia, Paul. Se tivesse de escolher apenas um para viver de novo, qual seria ele?
Hoje. Eu sou um homem feliz.
E no final, o que é que fica? O avô que curte os netos nos feriados ou o artista que canta “Hey Jude” para 80 mil pessoas?
Eles são o mesmo homem. No final o que fica é o amor.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.