As idéias revolucionárias de Lev Semyonovitch Vigotsky
A revolução russa foi um dos fenômenos que mais influenciou o século 20. Além de seus reflexos na política, repercutiu nos demais campos da atividade humana, como a arte e a ciência. A energia criadora liberada pela revolução bolchevique de outubro de 1917 se fez presente na poesia com Wladimir Maiakovski, no cinema com Sergei Eisenstein, na música com Igor Stravinski, no teatro com Konstantin Stanislavski, na pintura com Kazimir Malevitch, na psicologia com Ivan Pavlov e assim por diante. Principalmente na educação, também ocorreu uma revolução. O fenômeno russo na educação foi um jovem brilhante chamado Lev Semyonovitch Vigotsky, de família judia, nascido em novembro de 1896, na Bielo-Rússia.
Entre 1917 e 1923, portanto, muito jovem, Vigotsky atuou como professor e pesquisador no campo de artes, literatura e psicologia. E a partir de 1924, aprofundou seus estudos no campo da psicologia, atuando também na educação de deficientes. A carreira de Vigotsky foi meteórica. No período de 1925 a 1934, desenvolveu com outros cientistas estudos relacionados com a psicologia e anormalidades físicas e mentais. Graduado em Direito ele concluiu outra formação em Medicina, foi convidado a dirigir o departamento de Psicologia do Instituto Soviético de Medicina Experimental e morreu em 11 de junho de 1934.
Em dez anos, Vigotsky passou como um raio da teoria a prática e por instituições oficiais, produziu 200 trabalhos e morreu de tuberculose em 1934, aos 37 anos de idade. Como todos os grandes criadores surgidos na revolução russa, a trajetória de Vigotsky foi abalada com a ascensão e consolidação de Josef Stalin no poder. No seu caso há quem especule que lhes foram mortais os comentários elogiosos às suas obras feitas por Leon Trotski, que veio a ser o maior rival de Stalin, que mandou assassinar Trotski no México, a golpes de picareta.
O indivíduo e o coletivo
O certo é que dois anos depois da morte de Vigotsky, as suas obras foram proibidas por Stalin e ignoradas por um período de 20 anos na então Unieão Soviética. Somente em 1956 é que começaram timidamente a ser republicadas. Mas a contribuição de Vigotsky para a revolução russa já tinha sido dada. Ele foi um dos formuladores dos métodos para o grande mutirão que praticamente erradicou o analfabetismo no País em oito anos. A partir de 1980, o ocidente começou a olhar com mais atenção para o fenômeno Vigotsky e o interesse pelas suas obras cresceu até nossos dias, adquirindo este pesquisador uma importância na educação comparável à Piaget. As obras foram proibidas durante tanto tempo na União Soviética também em decorrência de uma visão tacanha dos stalinistas. Estes criticavam Vigotsky por destacar o aspecto individual da formação da consciência e por isso sugerir que o conceito de coletividade era formado por pessoas com particularidades próprias.
No Brasil, o pensamento deste russo desperta maior interesse em pessoas que se relacionam às áreas de psicologia e pedagogia, em que suas pesquisas mais se enquadram. Mas conhecer Vigotsky, além destes círculos, é tão importante quanto um leitor leigo conhecer o legado de Maiakovski, de Malevitch, de Eisenstein e outros grandes renovadores do período. Trata-se de uma necessidade para quem deseja ter cultura geral. Em nosso país foram publicados alguns livros de Vigotsky, como A Formação Social da Mente e Pensamento e Linguagem, pela Martins Fontes. A reduzida bibliografia ganha um reforço com Psicologia Pedagógica, da ArtMed Editora, uma edição comentada por Guillermo Blanck e que teve consultoria de Edival Sebastião Teixeira, professor do Cefet do Paraná.
Vigotsky começou a escrever este livro em 1921 e o terminou no início de 1924, quando tinha 27 anos. Ele escreveu para estudantes que pretendiam lecionar nas últimas séries do ensino fundamental e o livro se compõe de aulas na Escola de Formação de Professores da União Soviética. O seu objetivo era contribuir para a formação de uma nova geração de professores, que enfrentasse o desafio de acabar com o analfabetismo na Rússia. Para se ter uma idéia, no ano da revolução, em 1917, o índice de analfabetos no país alcançava 90 por cento. A meta dos revolucionários era acabar totalmente com o analfabetismo em um prazo dez anos. Seis anos depois esta meta tinha sido praticamente atingida.
O aluno que se educa
O livro de Vigotsky, apesar de dirigido a um público restrito de estudantes de pedagogia, universitários interessados em psicologia, professores e profissionais que se relacionam com a educação ou a psicologia, pode, assim, ser lido por qualquer pessoa culta, mesmo que não interessada diretamente no problema da educação. O que não se pode esquecer durante a leitura é que Vigotsky, um jovem professor, porém experiente e sábio, tinha como alvo um público de estudantes que almejavam ser professores de crianças e jovens até 15 anos.
O livro é formado por uma série de textos coloquiais e objetivos, em que Vigotsky vai construindo suas idéias com exemplos facilmente compreensíveis, utilizando imagens literária ou do cotidiano. Um exemplo: para Vigotsky, o professor é o organizador e o diretor do meio educativo social, assim como parte desse meio. Ao substituir os livros, os mapas, o dicionário, um colega professor, este professor atua como um puxador de riquixá, que substitui o cavalo. Ou seja, o professor assume o papel de uma parte da máquina educativa e não atua como educador, do ponto de vista científico. Ele só age como tal, quando distancia-se, incita a atuação das poderosas forças do meio, as dirige e as obriga a servir à educação.
E, desta forma, Vigotsky chega a uma fórmula do processo educativo. A educação deve ser feita através não do professor, mas da experiência do aluno, que é totalmente determinada pelo ambiente. A função do professor se reduz à de organizar e a regular o ambiente. Vigotsky condena a passividade do aluno, assim como o menosprezo que eventualmente se atribui a experiência pessoal do estudante. Para ele, do ponto de vista científico, isto se constitui em um grande erro, assim como falsas regras de que o professor é tudo e o aluno, nada. A educação, na visão de Vigotsky, deve ser organizada de tal forma que não se eduque o aluno, mas este se eduque a si mesmo.
Na base deste raciocínio está a condenação ao tradicional sistema escolar europeu, que sempre reduziu o processo de educação e aprendizagem à percepção passiva pelo aluno de lições e prescrições do professor. Isto não passa do que ele chama de uma torpeza psicológica. Vigotsky também dava uma grande importância à espontânea sensação de vida. Resumindo, ele achava importante a vitalidade na escola, algo que mentalidade pequeno-burguesa européia reprimia. Segundo ele, o método morto, sem alma, de ensinar as matérias, desempenhou um papel relevante na extinção da alma do mundo e no aniquilamento dos sentimentos. “Quem de nós não refletiu sobre o manancial inesgotável de estímulos emocionais que existe em um curso comum de geografia, astronomia ou história”, observa ele. Tudo o que se deve fazer é pensar que o ensino dessas disciplinas deve extrapolar os limites dos áridos esquemas lógicos e se transformar em tarefa do sentimento.
Exemplos perigosos
Para Vigotsky, a emoção é uma tarefa importante do pensamento. É importante que os alunos não apenas assimilem a geografia, mas que a sintam. São estas idéias que Vigotsky vai formulando em seu livro e que hoje podem parecer até simples, porém pouco praticadas. No entanto, elas foram elaboradas há 80 anos, em uma época em que muitas escolas do mundo praticavam a disciplina controlada pela palmatória e outras fórmulas autoritárias. Uma outra abordagem interessante de Vigotsky, é quanto ao uso da moral em sala de aula. Moral no caso, a que se extrai de uma fábula ou história.
Ele acredita que a criança não dispõe de elementos consolidados para extrair considerações morais de qualquer obra de arte e, por isso, o seu uso em sala de aula é algo temerário. Para Vigotsky, a literatura infantil em vez de ajudar, pode complicar as coisas, devido ao excesso de absurdos e disparates que ela contém. “A literatura infantil geralmente é um brilhante exemplo da falta de gosto, de alteração profunda do estilo artístico e da mais desoladora incompreensão do psiquismo infantil”, diz ele. Ele apresenta alguns exemplos para demonstrar a sua tese.
O primeiro é um conto de Tchecov e o segundo a fábula russa O Corvo e a Raposa, de Krilov. No primeiro caso, o conto de Tchecov mostra a história de um monge medieval, mas um grande artista, que resolve explicar para seus colegas de mosteiro o horror, os pecados e as tentações que havia visto na cidade. Mas ele era um artista e narrou de forma tão intensa e apaixonada aquilo que deveria ser considerado como o mal que no dia seguinte não havia um monge no mosteiro. Todos saíram bem cedo para conferir o que havia sido narrado na noite anterior, de tão admirados que ficaram.
No segundo caso, um professor foi narrar uma fábula para seus alunos, com objetivo de induzi-los a valorizar a pureza e condenar a malandragem. A fábula mostra como a astuta e perigosa raposa se aproveitou de um pobre e incauto corvo. Mas o professor narrou de tal forma que as crianças ficaram admiradas com a esperteza da raposa em enganar o corvo. O professor conseguiu o efeito exatamente oposto ao que desejava. Coisa semelhante aconteceu ao narrar a fábula A cigarra e a formiga, com objetivo de valorizar o trabalho e condenar a preguiça. As crianças ficaram muito mais interessadas na alegre cigarra do que na tediosa formiga. Em vez de inspirar nas crianças o respeito pelo trabalho, a fábula lhes inculcou a alegria e a beleza de uma vida fácil e despreocupada. Resumindo, não funcionou em nenhum dos casos.
O mais admirável do livro de Vigotsky é saber que este conhecimento produzido em um laboratório em plena ebulição social como os primeiros anos da revolução russa, foi sendo organizado por um jovem de pouco mais de 20 anos. Esta é uma das razões que explicam o fato de Vigotsky, apesar de ignorado injustamente tanto tempo, eclodiu no ocidente de forma vigorosa e hoje é um dos nomes essenciais quando o assunto é educação.
Osneli Bittencourt
é jornalista e acadêmica da Faculdade de Artes do Paraná.