Silêncio. Fora da sala, alguns sons, passarinhos, o ônibus mudando a marcha. Uma ou outra voz. Na sala de aula o silêncio do nada. O silêncio do vazio. Clarice sozinha na escola. Todo mundo já foi embora. Clara, a Tia Clara, e o guardião ficam até mais tarde. Tia Clara não fica até muito mais tarde. Tem medo do guardião. O guardião mora na escola. Uma salinha de aula que virou a casinha do guardião. Genaro, que mora sozinho, cuida da escola mais ou menos. Uma gurizada pula o muro da escola para fumar maconha. Genaro não vê ou finge que não vê. Clara já viu um monte de vezes. Gritou, vão embora, vou chamar a polícia, vagabundos. Os moços foram embora. Clara tem medo de Genaro, que é estranho, que mora sozinho, que não fala com ninguém, que tem medo de tudo. Tem medo de tudo mas serve para fingir que protege a escola. Que cuida. Toda tarde Genaro fica lá, olhando Clara limpar as salas até ela ir embora. Só olhando. Clara finge que não percebe, mas sente Genaro olhando. Clara fecha a sala de aula, deixa Genaro de fora para trabalhar melhor. Os sons de fora entram pela janela no fundo da sala. Dentro da sala, o silêncio, o silêncio do nada.

Última sala pra Clara limpar. Quer terminar logo o trabalho, ir embora. Clara acha que a escola lembra um hospital. Um ar de tristeza. Os filhos de Clara estudam na escola, de manhã. Vem para a aulas e vão embora. A escola abre, as crianças tem aula, a escola serve a merenda, as crianças vão embora, a escola fecha. Fica vazia. Morta. Hospital não, cemitério. Morta como um cemitério. As crianças vão embora e deixam o vazio do silêncio. Um vazio morto. Vão embora rápido, não gostam da escola. Os professores vão embora junto, quase antes, o quanto antes. Os professores também não gostam da escola. Queriam que a escola fosse diferente. Mais bonita, aparelhada, ouviu dizerem. Queriam viver melhor, ouviu dizerem. Reclamam do salário, da dificuldade da profissão. Poucos conversam com Clara. A maioria nem vê Clara por lá. Invisível. Quem conversa sempre compara: olha, o que eu ganho aqui é quase igual o teu salário. Como se Clara ganhasse muito, pombas! Ela não tem culpa que os professores ganham pouco. Uma miséria. Clara um dia disse, minha filha quer ser professora. Disse num dia que estava triste, para puxar conversa. Nem filha tinha. Só menino em casa. A professora: Cê ta louca? Sabe quanto eu ganho? Clara ficou preocupada, na cabeça dela os professores tinham que estar felizes, para passar isso pros guris. Não era culpa dos professores. Tava era tudo errado mesmo.

Clara espalha a água com sabão pelo chão de cimento pintado. Papel no chão. Um lápis debaixo de uma carteira. Giz no chão, giz pisado. Clara vai empurrando a sujeira com o rodo. Limpeza mais ou menos. Limpo, limpo, não fica. Para limpar tem que caprichar. Caprichar ela não caprichava, queria ir embora logo da escola-cemitério. Do vazio. Do silêncio. Um medo passa por Clara, um arrepio. A escola dá até medo, aquele lugar quieto. Clara abre a porta para deixar sair a água. A água escorre para o pátio, Clara empurra com o rodo. Genaro lá do outro lado, encostado numa árvore. Lá, vendo. Clara vê a quadra de futebol vazia, os filhos contaram, Mãe, não dá para jogar bola na escola. Clara não entende. Não entendeu. Perguntou para a diretora, não dá para meus piás usarem a quadra de tarde, o time lá da Rua, jogar bola? Melhor que ficar na Rua, lá tem um povo ruim, maloquerada, né? A Diretora não gostou, falou primeiro dando bronca, onde já se viu, servente metida, dando palpite, nem entendia de nada, ela sabia sim fazer seu trabalho de Diretora, os pais tinham confiado nela, onde já se viu, depois falou como se Clara tivesse virado outra pessoa: olha, nós não temos condições de abrir a escola, de abrir por que depredam, quebram, sabe? Pessoal é fogo, não vê o trabalho que dá! Tem a questão política e tudo, sabe? Deu as costas e saiu. Fazendo cara de saco-cheio. Como se Clara não visse, não percebesse seu desagrado. Clara via. Via desesperança, desânimo. Via a vontade da Diretora de se aposentar e largar a escola-cemitério. Ir embora dali. Cuidar dos filhos que na escola não estudavam. Da família que morava longe dali. Questões políticas.

A limpeza quase terminando. Última enxaguada. Na cabeça de Clara a escola tinha que ser diferente, tinha que ficar aberta. A escola, o pessoal tinha que usar, a escola tinha que ter barulho, grito de criança jogando bola, barulho de música, barulho de aula. Portão não tinha que ter. Ela achava, se todo mundo usasse, todo mundo cuidava, a escola era de todo mundo, todo mundo ia querer tomar conta. Ia querer ir lá. Ela queria que fosse assim. Era como imaginava que uma escola fosse antes de começar a trabalhar no grupo. Vai ver, estava errada. Tinha pouco estudo mesmo. Vai ver é assim que as coisas tem que ser. Tudo quieto, morto. Sujo e feio. Os professores reclamando. A escola fechada. Vai ver é assim. Nem pensar vai ver Clara podia. Que trabalhasse, oras, a escola tinha a diretora, que sabia como fazer, as tais questões políticas. Pegando o último lixo. Plástico de bolacha. Papel amassado. Papel de chiclete. Clara ia juntando para jogar no lixo. Um papel maior, folha de caderno. Clara desamassou. Redação, dizia, “Escreva sobre sua Profissão”, correções em vermelho. Letra do filho. Clara reconheceu. Leu indiferente. “Quando crescer, quero ser juiz!”. O filho sempre dizia isso em casa. Era o que queria, não sabia por que, vai ver tinha ficado impressionado com a audiência de guarda. Queria ser juiz desde então. Onde já se viu, como se pudesse, qualquer um, filho de pobre, virar doutor. Esse guri vive sonhando. Tem q’tomar juízo, para de sonhar. Clara amassou a redação do filho e jogou no lixo. Matou o sonho. No lixo morrem todos os sonhos na escola-cemitério. No lixo da escola cemitério o futuro do Brasil vai morrendo aos poucos..

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br
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