Está nevando barbaridades em Santa Fé, cidade fictícia (ou nem tanto), fincada ali em Jacarepaguá, Rio, no Projac, da Globo. A duas semanas de seu fim, Meu Pedacinho de Chão está longe de ser a novela que ninguém aguenta mais ver – até por ser uma representante compacta do gênero, que cerrará cortinas com pouco mais de 100 capítulos. Mas, a essa altura, já foi da primavera/verão ao outono e agora vive dias rigorosos de inverno, promovendo uma troca de humores, figurinos, cores e texturas de acordo com cada estação. A temperatura atual “gelou o coração de Zelão (Irandhir Santos), que gelou toda a cidade”, como explica o artista plástico Raimundo Rodriguez ao Estado, em visita à cidade – que ele se recusa a chamar de “cenográfica” – na última quinta-feira. Santa Fé já estava toda revestida de Acrilon, tecido branco que cobriu tudo de “neve”, preservando por baixo o trabalho que consumiu 20 toneladas de latas. A criação é obra de Raimundo, que cita Van Gogh e neoconcretismo, entre outras referências, para apresentar seu pedaço de chão – ou Latifúndio, trabalho seu, com latas, que antecede a novela e inspirou a engenharia de Santa Fé.

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Antes que a releitura de Benedito Ruy Barbosa por Luiz Fernando Carvalho chegue ao fim, a primavera voltará a reinar na região e, espera-se, o afeto de Zelão possa de novo nos contaminar e seduzir a professora Juliana (Bruna Linzmeyer). Até lá, o falso capataz, na verdade um “super-herói” – avisa-nos o diretor de Núcleo Carvalho -, mantém a negritude das vestes.

“Zelão tem agora um período de luto”, argumenta a figurinista Tanara Schonardie. “Ele passou daquela fase do desenho animado. Era o personagem mais primitivo e só usava cores primárias, por ser o mais próximo de uma ilustração”, continua. “Com o amor, que veio junto com o conhecimento, quando aprende a escrever, com essa entrega à professora, ele ganha sofisticação. Também teve a representação da luta, que é a roupa de toureiro, quando ele chegou todo vermelho.”

Alguém nos interrompe para pedir à figurinista orientações sobre o vestido de noiva, item imprescindível para fim de novela. “Será branco, mas com coloridos”, adianta-nos.

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Tudo acontece no galpão do Núcleo de Carvalho no Projac, território que mal lembra o restante do complexo cenográfico da Globo, misturando oficina de marcenaria, ateliê de artes e costura. Tem ainda a mágica sala onde os carrinhos do coronel Epa (Osmar Prado) e seu galinho profético são confeccionados e ganham vida, por milagres que só os artesãos do stop motion explicam.

São 16h quando Luiz Fernando nos encontra em meio a araras de casacos, saias e vestidos, com muito plástico, bolinha de pingue-pongue, forminhas de waffle e todo um guarda-roupa que remete ao universo infantil. Carvalho passou a véspera gravando no set, expediente que diretores de núcleo, em geral, só cumprem em início de novela, e consumiu a noite na ilha de edição para finalizar o capítulo do dia. Trabalha com a temperatura da plateia e leva à risca o termo “obra aberta” para novela.

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“As pessoas dizem que o gênero está morto. Não está. O que está morta é a relação que os profissionais que produzem esse gênero tem, na maioria das vezes, com o próprio gênero. Do tipo ‘novela é assim mesmo’… Tudo vai se pasteurizando.” Assegura que não mexeu em uma linha sequer do texto de Benedito. “Quando você alça a leitura do universo mítico do Benedito, você tem uma fábula. Lá no começo, identifiquei um texto muito simples, quase juvenil. Mais que uma grande história, é uma narrativa de grandes arquétipos, personagens muito próximos do naïf.” De quebra, pode contribuir na formação de um novo público para o gênero, “a rapaziada do videogame”, como ele diz, visto que a novela é competente na “tradução” atual de um texto de 40 anos. Isso, sem dizer que a produção, com aquela pinta de casa da bruxa de João e Maria, atrai criança como se fosse doce.

A audiência tem respondido bem, com índices próximos ao que o horário registrava há dois anos e, às vezes, até superiores aos da novela das 7.

“Quem não tem acesso a Netflix, a TV paga, nunca foi a um museu, não viu uma obra de arte, não viu Cinema Novo, passa a ter uma comunicação paralela à história, de formação de uma cultura básica, da história do cinema, da história das artes, da história dos costumes.” Oxalá, diretor.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.