Quando se pensa em A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, que estreia nos cinemas em cópia restaurada em digital, vem à mente aquela que é uma das mais famosas cenas da história do cinema – Anita Ekberg, de vestido longo escuro, na Fontana di Trevi, sob o olhar atordoado de Marcello Mastroianni. Anita, no papel da temperamental atriz Sylvia, tornou-se a mulher mais desejada do mundo. O termo Paparazzo, apelido de um dos personagens, virou sinônimo de fotógrafo sensacionalista. O próprio título, La Dolce Vita, consolidou-se como logotipo verbal para o tipo de vida veloz, charmosa, superficial, e, talvez, autodestrutiva que se anunciava no começo dos anos 1960.
A Doce Vida é tudo isso e muito mais. Há quem a considere “a” obra-prima de Fellini, destronando até mesmo o imbatível 8 1/2. Fato é se 8 1/2 refaz a formidável descida do cineasta a seu mundo interior, La Dolce Vita prefigura o início de uma época, da “sociedade do espetáculo”, expressão que o francês Guy Debord cunhou apenas alguns anos depois. Tudo está lá, da sequência inicial com a estátua do Cristo carregada por um helicóptero ao estranho monstro marinho que aparece na praia no final de uma farra do personagem principal. Tudo define uma época e prefigura o que vem a seguir.
E quem é esse personagem? Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), sem dúvida um alter ego do próprio Fellini, como será novamente, três anos depois, no papel de Guido Anselmi, em 8 1/2. Em A Doce Vida, Rubini é jornalista e tenta ser escritor. Imerso na badalação noturna da imprensa sensacionalista, mulherengo e dispersivo, nunca consegue se concentrar. E vai levando a vida. A trajetória de Marcello é marcada por episódios, mais que por uma trama em linha reta. São cenas da vida, que se sucedem, e compõem esse painel de época e do personagem.
O filme, em esplêndido preto e branco, conta, como outros de Fellini, música de Nino Rota. A trilha sonora não é exterior à trama. Não a ilustra, simplesmente. Faz parte da história, quase como um personagem ou um observador zombeteiro que a tudo acompanha com seu risinho irônico e distanciado. Porque a marca da música é também a do próprio Fellini. A intensidade emocional de algumas cenas muitas vezes recebe como contraponto aquele toque de ironia que distancia e propõe ao espectador refletir sobre o que está vendo.
Em A Doce Vida, Fellini apresenta uma imagem chocante da decadência. Seria um erro ver essa decadência restrita a Roma, seu palco cinematográfico. Fellini fala da civilização ocidental em seu conjunto, imersa num sentimento hedonista, consumista, de culto às celebridades, avessa a qualquer reflexão ou aprofundamento ético. É a era do vale-tudo que se anunciava em 1960 e que terminou por se concretizar nos nossos dias. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.