A dinâmica da cultura xetá

Em reportagem publicada pelo jornal Gazeta do Povo, no dia 6 de março de 2005, Guilherme Voitch e Érica Busnardo escreveram: ?Da cultura e dos hábitos que tornaram os xetás diferentes de qualquer outro grupo indígena do Sul do País, restaram só algumas lembranças. A língua é falada por apenas três pessoas?. E na reportagem de 08/3 foi atribuída à antropóloga Carmen Lucia da Silva, doutora e pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR-Universidade Federal do Paraná, a seguinte afirmação: ?Manter a língua é o primeiro passo para que eles continuem sendo um povo?, o que não procede por algumas razões, entre outras, colocadas a seguir.

Carmen, que é também responsável pela unidade de pesquisa de Etnologia Indígena do Museu da UFPR e tem dissertação de mestrado e tese de doutorado defendidas a partir de pesquisas realizadas junto aos xetás desde 1996, esclarece que ?a língua não é o único elemento que define a pertinência e existência de um povo. Ela é um dos elementos que marca a identidade do grupo como tantos outros (…), mas não é tudo?.

Ela destaca que é preciso ter cuidado com afirmações semelhantes. ?Se pensarmos que só é índio quem fala a língua indígena, estaremos ignorando muitos povos que sofreram processos históricos violentos e que em função deste contato interétnico foram forçados a deixar de falar a língua por diferentes tipos de imposições e pressões como, por exemplo, os povos indígenas do Nordeste. Ã, por exemplo, entende a língua xetá, traduz o que escuta, embora afirme que não consegue se expressar em xetá e que junto com os demais sabe que vai poder prosear na língua?.

Comenta que ?quatro dos xetás mais velhos esqueceram a língua porque não a praticaram, por força da condição em que foram criados, mas quem pode ter certeza de que ao ouvirem os outros falarem sua língua não irão dela se lembrar? Estes eram falantes ativos, portanto, eles guardam a estrutura da língua na memória e nas ocasiões que se encontraram com os falantes, puderam evocar suas lembranças da língua (…). As lembranças que os xetás têm de seu povo lhes são suficientes para se reconhecerem enquanto pertencente a ele, portanto diferentes sócioculturalmente de outros povos indígenas?.

Ao comentar sobre as frentes de expansão, Carmen ressalta que ?a exemplo de outros povos da mesma família lingüística dos xetás, os conflitos internos entre os diferentes grupos domésticos, e destes com outros povos sempre existiram, mas o grupo tinha seus mecanismos de controle interno, inclusive a questão da própria mobilidade dentro do território histórico tradicional. É inegável que o avanço da colonização sobre suas terras impôs-lhes novos embates e os impeliu as constantes fugas e perdas do contingente populacional. As doenças, as forças das armas, o desrespeito pela diversidade cultural e o esbulho de suas terras passaram por cima de tudo?.

A antropóloga chama a atenção para um fato de extrema importância. ?O Tuca, o Tiqüem (José Luciano) e a Ã, mesmo casados com pessoas não xetás, observam e praticam o sistema de nominação de seu povo. Todos os filhos e netos deles têm nomes xetás. Os demais, quando se reuniram em 1997, solicitaram aos dois primeiros e a Kuein que lembrassem seus nomes ou lhes dessem um nome na língua e também a seus filhos e netos. A onomástica xetá é bastante complexa, ela guarda relação com o ambiente ecológico e cosmológico tradicional do grupo, que estes presentificaram e reinterpretaram no contexto sociocultural em que vivem hoje. Embora vivam entre Kaigangs, Guaranis e não-índios, as explicações para a origem de tudo que existe no mundo se apóiam nas histórias contadas por seus pais e avós, e não nas explicações daqueles que os criaram. Estas histórias eles contam aos seus descendentes.?

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. E-mail: zeliabonamigo@uol.com.br

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