Tal como fez ano passado, a revista “Rolling Stone” vem às bancas no mês de seu aniversário com uma matéria de capa para provocar polêmica. É a eleição das, como diz a capa, “100 maiores músicas brasileiras”. Uma escolha pretensiosa, como foi a do ano passado, que elegeu Tropicália ou Panis Et Circensis como o melhor disco da música brasileira de todos dos tempos.

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Mas listas são para isto mesmo, servem como ótimo combustível de discussão em bares e restaurantes, agitam o cenário acadêmico e viram temas de textos como esse. Cada eleição, como a da “Rolling Stone”, tem seus méritos e seus deméritos. Mas, em sua ampla maioria, tem mais vantagens que desvantagens.

O problema da revista está no enunciado – é sempre complexo você analisar qual é a “maior” música da história. Para ser a “maior”, não basta ser apenas uma boa canção.

É preciso ter importância histórica, ter se tornado referencial de composição, servir como exemplo para outros artistas. E para chegar a tal definição, seria preciso se despir de qualquer preconceito.

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Isto significa que não se pode escolher apenas por gosto. Se um amante da Bossa Nova votar, vai escolher Chega de Saudade ou Desafinado. Se for um sambista, pode escolher Pelo Telefone, Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida. Quem for da turma romântica certamente votará em Detalhes.

Ou os mais antigos, que poderão escolher clássicos de Orlando Silva (Lábios Que Beijei), Sílvio Caldas (Chão de Estrelas) ou Vicente Celestino (O Ébrio). Opiniões não faltarão, e razões para as escolhas também. E o contrário também, fazer força para que aqueles artistas que eu (o votante) não gosto não tenham sucesso.

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Todas estas opiniões, portanto, estarão “viciadas’. Por isso a força que o crítico tem que ter para analisar tudo de forma fria, e chegar a uma conclusão lógica. O sucesso da eleição da “Rolling Stone” vem da música vitoriosa. É Construção, composição genial de Chico Buarque, de seu álbum de 1971, o mais importante de sua carreira – e o que teve a maior vendagem.

A canção foi seguida de, pela ordem, Águas de Março (Tom Jobim), Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro), Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), Mas Que Nada (Jorge Benjor), Chega de Saudade (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), Panis et Circensis (Caetano Veloso e Gilberto Gil), Detalhes (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), Canto de Ossanha (Baden Powell e Vinícius de Moraes) e Alegria, Alegria (Caetano Veloso).

A lista acima, naturalmente representativa por ser a que reúne as dez mais votadas das cem escolhidas, mostra que houve uma boa avaliação pelos votantes. Músicas belíssimas, como Beatriz (Chico Buarque e Edu Lobo), ficaram de fora das dez primeiras. Outras importantíssimas, mas não tão belas, como Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (Geraldo Vandré), também não apareceram.

Ficaram dez grandes exemplares da excelência da música popular brasileira (em letras minúsculas mesmo). Há desde canções representativas de uma revolução, como Chega de Saudade, até canções que formaram uma geração de artistas, como Asa Branca.

Sem contar clássicos como Carinhoso e Águas de Março, e sucessos como Detalhes e Mas Que Nada, quatro composições que venceram o tempo e se tornaram de domínio público.

Voltando à vencedora, Construção é tudo que se imagina de uma canção popular – é até mais, na verdade. A composição é importantíssima na compreensão de um momento do Brasil. Feita em 1971, logo após o desencanto exposto por Chico sobre a situação do País em Apesar de Você, ela é um grande tema de protesto, sem que tenha crítica pesada ou explícita.

Na sua história, contando a trajetória de um operário da saída de casa até a morte, a música trafega com brilhantismo pelo “sonho’ produzido pelo Milagre Brasleiro – que, metaforicamente, morreria com a tragédia do operário que “agonizou no meio do passeio público” e “morreu na contramão atrapalhando o sábado”.

Chico Buarque conseguiu se superar, se é que isso é possível, em Construção. Seu trabalho, todo baseado em versos dodecassílabos e em proparoxítonas, é extraordinário.

E não há, mesmo para quem imagina que foram faladas duas palavras difíceis (dodecassílabos e proparoxítonas), nenhum verso que seja de difícil assimilação por quem ouve a música. Pelo contrário, o mais complicado que se ouve é “tráfego”, “náufrago” ou “pródigo”, simples e perfeitas.

A música é, literalmente, uma construção de versos “cimentados’ pela melodia brilhantemente arranjada pelo maestro Rogério Duprat – uma ligação só possível pelas transformações da Bossa Nova e da Tropicália (taí outra importância histórica da canção, é a primeira contribuição importante de Duprat, ligado aos tropicalistas, a um “conservador’ como Chico).

Depois da primeira passagem da música, em que os versos se ligam naturalmente, há um descompasso que justifica o apressamento do arranjo e as ligações diferentes da letra (“E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou no ar como se fosse sábado / (…) / E se acabou no chão feito um pacote bêbado / Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado”).

E aí está o principal achado de Construção, que continua apaixonando os jovens músicos e os fãs do cantor. A letra de Chico Buarque, a melhor já feita na nossa música popular, é uma parede que se constrói da maneira que o ouvinte quiser. Permite diversas leituras (algumas, certamente, que sequer passaram pela cabeça do compositor) sem exigir maior esforço, o que é uma vitória da arte popular em tempos de ditadura – completada pela execução, imediatamente após Construção, de Deus Lhe Pague na interpretação definitiva de Chico no álbum de 1971. É um hino social dentro de uma música perfeita, a maior música brasileira de todos os tempos.