São Paulo – Há algumas pistas espalhadas por Femme Fatale, de Brian De Palma, que estréia hoje nos cinemas de todo o Brasil. Uma delas é o horário marcado no relógio: 3h33. Nessa hora, a personagem de Rebecca Romijn-Stamos adormece na banheira. Em tudo o que acontece depois, os ponteiros marcam sempre a mesma posição. Qual é a dica? Veja o filme como se você estivesse sonhando – e dessa forma, não questione muito o que se passa. Aproveite. Não peça coerência, renda-se aos estímulos sensoriais e lembre-se de que, no sonho, o tempo é outro. Pode-se sonhar com acontecimentos que duram sete anos e o registro cronológico não ir além de alguns segundos.
É pedir muito como postura de espectador? De certa forma é, levando-se em conta a tradição realista do cinema. Existe o pressuposto de que todo filme opera com uma realidade que independe dele. Nesse sentido, ele seria uma arte imitativa, como imitativo, por exemplo, é aquele tipo de quadro que quer reproduzir à perfeição um pôr-do-sol. Quanto mais a tela se aproximar da realidade da natureza, mais bem-sucedida ela será. Mais vazia também, já que não há nenhuma vantagem em se reproduzir mecanicamente algo que em si já é majestoso.
Assim, pede-se ao cinema “realista” que conte uma história, de maneira perfeita e coerente, que nos envolva, faça sentido e não deixe nenhuma ponta solta no final. O filme seria reprodução de uma “fatia de vida” – no caso, um assalto no Palais du Festival, em Cannes. Bem, mas não é isso que se vai encontrar num trabalho de Brian De Palma.
Nele, não há imitação do real. Há apenas o cinema, que cria a sua própria realidade. Ou seja, um mundo de regras particulares, verossímeis desde que compartilhadas pelo espectador. Resumindo: entra-se no jogo, ou não.
Nesse caso, o cineasta apóia-se, precariamente, em um referencial. O Festival de Cannes existe, o cineasta Régis Wargnier de fato dirigiu o longa Leste-Oeste, e a atriz Sandrine Bonnaire, que o acompanha, faz parte do elenco desse filme.
Já a starlet Veronica (Rie Rasmussen), “vestida” com uma jóia em forma de cobra cravejada de diamantes, que caminha ao lado de Wargnier, é pura invenção. Na cena mais polêmica de Femme Fatale, a ladra Laure, passando-se por fotógrafa, seduz a garota da cobra. A cena com as duas é quente. Ou fake, se você entender que tudo é pura representação, e então o sexo entre mulheres parecerá apenas misoginia.
Mas será preciso lembrar que a montagem perversa é também pura encenação (basta lembrar Sacher-Masoch e A Vênus das Peles), mas o desejo posto nessa encenação é real, e bem real.
Limite tênue
Enfim, Femme Fatale se alimenta desse limite tênue entre o que é real e a sua representação. O documentarismo ingênuo acha que o real está ao alcance da mão, ou da lente. Basta captá-lo. O jornalismo, antiintelectual por definição, supõe a objetividade como dado da natureza. Se há algo que um filme de Brian De Palma nos propõe, como problema, é que, se o real existe, ele só pode ser alcançado por meio de uma operação mental, que constrói o fato ao invés de simplesmente captá-lo. Portanto, Femme Fatale é filme de interesse para documentaristas e jornalistas.
Ferramentas
As ferramentas, com as quais se constrói esse artifício de acesso à verdade chamado cinema, variam conforme o diretor. De Palma, como se sabe, gosta de trabalhar sobre materiais preexistentes (Hitchcock, o noir, o Bolero de Ravel, etc.) Alguns pintores usam técnica semelhante, pintam sobre telas já pintadas. Ninguém fala nada contra eles. Mas no cinema isso não se perdoa. É a força da tradição realista.