A beleza e o caos na crônica carioca do século 20

“Por mais que eu fale, vou lhes ficar devendo. O Rio é muitos.” Colada à parede, a frase de João Antônio (1937-1996) sintetiza o espírito da exposição que o Sesc abre nesta terça-feira, 21, em seu espaço cultural no Flamengo. Com textos, documentos, fotos, vídeos e objetos, Rio de Mário, Rubem e João é norteada pela visão de João, de Rubem Braga e de Mário Lago como observadores da cidade e cronistas de seus bairros diletos, cada qual a seu estilo.

“São três autores com vivências e visões diferentes do Rio: a cidade do João Antônio é mais escura, do submundo, do subúrbio, dos desacertos sociais. A de Rubem Braga é solar, azulada, lírica, embora ele também tivesse visão crítica. A de Mário Lago é a da boemia, da festa, a essência do Rio”, descreve a curadora da mostra, Selma Caetano, produtora cultural que tem se voltado a projetos envolvendo literatura.

São seis salas temáticas do palacete do Sesc, todas tendo a palavra como atração central. João Antônio Ferreira Filho, jornalista (de revistas como “Realidade” e “Manchete” e de “O Pasquim”) e escritor, vencedor de dois Prêmios Jabutis já em sua estreia, com “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963), é o menos conhecido. De família proletária de São Paulo, ele se apaixonou pelos subúrbios do Rio, que classificava como sua “paixão mais duradoura”. “Como um personagem meu, digo que Deus tinha todo o direito de ser perfeito. Mas não era para exagerar”, escreveu o autor, que falava de bairros como Méier, Encantado e Madureira com fluência e graça.

A mostra exibe a máquina de escrever do jornalista, imagens das cadernetas de anotações – conhecido por ser econômico, ele usava também embalagens de cigarro desmontadas como folha de papel -, fotos na rua e na sinuca e textos sobre os marginalizados (dizia que a favela era “o lugar mais alegre do Rio”, onde “o carioca é desconcertante”) e sobre Copacabana, onde morava.

Considerado o grande cronista brasileiro do século 20, Rubem Braga (1913-1990) nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES), onde publicou os primeiros textos em 1929, ainda adolescente. A carreira como jornalista começou em Belo Horizonte em 1932, quando cobriu a Revolução Constitucionalista; a de autor publicado foi em 1936, com “O Conde e o Passarinho”. Na 2.ª Guerra Mundial, foi correspondente na Itália.

Seu tom, impregnado de romantismo e bom humor, era admirado em publicações como o jornal O Estado de S.Paulo. Braga apreciava o Rio de sua cobertura em Ipanema, onde cultivava tantas árvores e plantas que o espaço tinha cara de quintal. Em “Chegou o Outono” (1935), escreveu que “no Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a população continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco semanas ainda”. Não era uma reclamação. Tanto que, à chegada do outono, sentenciava, no mesmo texto: “Ponhamo-nos melancólicos”.

Por serem de outros Estados, os dois cronistas foram arrebatados pelas belezas do Rio e se deixaram contaminar por esse alumbramento em seus textos – mas sem ingenuidade. Autointitulado “endocrinologicamente carioca”, Mário Lago (1911-2002) era da Lapa, “o chão de todos os seus passos”. “O carioca tem certo bairrismo: se é do Rio, é bom. Por isso escolhemos os três. As visões são, por vezes, antagônicas”, explica ainda a curadora.

Multimídia (compositor, radialista, ator, dramaturgo), Lago não era cronista, mas falou do Rio nas músicas, ícones do carnaval e da boemia. Suas “Ai, Que Saudade da Amélia” e “Aurora” são retratos de uma época, a primeira metade do século 20 – ele brincava dizendo que tinha que ter três mulheres importantes na sua vida: Zeli, com quem ficou casado 50 anos e teve quatro filhos, Aurora e Amélia, que lhe davam dinheiro.

“Boêmio da água mineral”, pois virava noites sem qualquer aditivo alcoólico, era conhecedor e apaixonado por sua terra, que motivava declarações derramadas. “O Rio é vício realmente, você é dependente dele. É um orgasmo. Meu estado de alma permanente, meu vício, meu amor mais verdadeiro. Meu feitiço fica aqui”, disse numa entrevista. Um bar cenográfico, com livros no lugar de garrafas, foi criado no Sesc sob sua inspiração. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

O RIO DE MÁRIO, RUBEM E JOÃO

Arte Sesc. R. Marquês de Abrantes, 99, Flamengo, Rio. Tel. (21) 3138-1582 e 3138-1634. 3ª à 6ª, 10h/19h. Sáb e dom., 10h/17h. Grátis

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