No longínquo ano de 1955, houve uma exposição em Paris para comemorar os 60 anos do cinema. Quando os representantes da delegação norte-americana chegaram ao Museu de Arte Moderna para conferir o evento deram de cara com um cartaz em que aparecia uma atriz norte-americana do cinema mudo chamada Louise Brooks. O pessoal não entendeu a honra conferida àquela moça e perguntou por que ela em evidência no cartaz e não divas consagradas como Greta Garbo ou Marlene Dietrich. O fundador e diretor da Cinemateque Française, Henri Langlois, respondeu, certamente com a suave e mortal empáfia de que só os franceses são – ou eram – capazes: “Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas Louise Brooks”.
A frase ganhou contornos de profecia e o episódio entrou para a história. Muitas mulheres lindas desfilaram por Hollywood e conquistaram a Meca do cinema desde que alguém teve a idéia de levar uma câmera de filmar para aqueles lados de Los Angeles, mas Louise foi mais longe: conquistou o coração das pessoas que garimpam no lixo da história preciosidades para exibi-las no panteão da arte. Enquanto as outras foram aos poucos desaparecendo, Louise emergiu de uma quase absoluta obscuridade desde os anos 20 para em diante tornar-se símbolo sensual de um período.
A rapariga, como dizem os portugueses, fez 40 anos antes tudo ou quase tudo ou mais um pouco que Leila Diniz fez 40 anos depois. Mary Louise Brooks, a garotinha que nasceu no Kansas no dia 16 de novembro de 1906; aos quinze anos de idade já estava na Denishaw Dance Company em Nova York e em 1924, com dezenove aninhos, perfilava no celebre Ziegfeld Follies.
Não bastasse, posou nua, namorou vários sujeitos, incluindo Charles Chaplin, fixou condições de trabalho em Hollywood, desafiou diretores, enfrentou o sistema e foi banida pelo sistema que não premia maus exemplos. Em compensação, foi reconhecida na Europa como alguém acima da mediocridade que reina no universo das estrelas e dos astros de Hollywood quando os holofotes se apagam.
Os que buscam ícones do passado nos livros de história ou na internet certamente encontraram pelo menos uma vez a moça de olhar petulante, cabelos curtos (look chamado Brooksie, que a atriz usava para disfarçar o rosto curto, a testa larga demais e a boca pequena e emoldurar o que tinha de mais marcante, os olhos), sem saber que foi uma atriz de gênio fortíssimo, que fez 25 filmes entre 1924 e 1938. Ou então viram suas fotos ousadas para os remotos anos 20, como posar nua em pelo, incluindo nus frontais, tabu em Hollywood durante muitas décadas. A moça era do balacobaco.
O declínio de Louise Brooks em Hollywood começou em 1928 quando o produtor B. P. Schulberg recusou dar um aumento exigido pela atriz, que largou a Paramount e foi baixar na Alemanha para filmar A Caixa de Pandora, a convite do G. W. Pabst. Este filme, curiosamente, deu grande notoriedade a Louise, embora a sua recepção tenha sido inicialmente excessivamente negativa. A exacerbada sensualidade da personagem Lulu, que teria sido inspirada na própria atriz, perpassa o filme de ponta a ponta e choca todo mundo que o vê.
Para se ter uma idéia, nos Estados Unidos ele teve o final alterado para a personagem se regenerar e não dar mau exemplo, assim, nesta versão Lulu toma jeito, deixa de ser tarada e entra para o Exército da Salvação. Era demais para a época aquela fêmea fatal que se aproximava dos homens para os devorar e destruir. No final do ano em que fez A Caixa de Pandora, Louise retornou aos Estados Unidos ainda ressentida com a Paramount e jogou uma pá de cal no que restava de sua carreira em Hollywood. O cinema falado estava em evidência e os estúdios estavam sonorizando filmes mudos que não foram lançados. A atriz se nega a colocar voz em Canary Murder Case (O Drama de uma Noite), mesmo sob a oferta de US$ 10 mil devidamente acompanhada de uma ameaça: “Ou aceita ou nunca mais trabalha em Hollywood”. A dona respondeu: “E quem quer trabalhar em Hollywood?”. Era ou não era petulante a tipa? Os produtores rangeram os dentes e se vingaram: espalharam que a voz da atriz era horrível e por esta razão não dublou o filme. Na transição do cinema mudo para o falado, dizer que alguém tinha uma voz horrível era dar um atestado de &oacu,te;bito para a carreira.
As vítimas caiam aos montes. Uma delas foi John Gilbert par constante de Greta Garbo, cuja voz fina e afeminada o deixava em dissonância com os papéis românticos que interpretava. Gilbert nunca mais foi o mesmo. O filme Cantando na Chuva, com Gene Kelly, explora este drama que soterrou muitas carreiras. Foi o que aconteceu a Louise, embora não tivesse problemas com a voz. Ela foi encostada pelos estúdios e esquecida pelo público.
Entre 1928 e 1939, Louise Brooks ainda faz algumas produções na Europa e nos Estados Unidos, mas quando, em 1943, retornou a Nova York, ela era uma desconhecida que conseguiu trabalho apenas na Rádio CBS, o que não deixa de ser ironia para quem não podia trabalhar no cinema por não ter uma voz agradável. Nos anos seguintes, ela se ralou para ganhar a vida, incluindo trabalhos de vendedora na loja Sak’s, na Quinta Avenida. Em 1948, começou a escrever sua biografia, destruída seis anos depois. “Não estou disposta a escrever a verdade sexual que tornaria minha vida digna de ser lida”, confessou com uma dose de sinceridade até hoje de espantar qualquer um. Mas ela explicava que a história de uma vida é feita de amores, ódios e conflitos sexuais e nem todas as pessoas estão preparadas para entender estes conflitos.
No entanto, se não publicou a sua autobiografia, ela não deixou o material se dissipar. Louise entrou de cabeça na literatura e seu livro Lulu em Hollywood virou best-seller, colhendo boas críticas até da New Yorker. Daí em diante, como outro ícone do cinema mudo, Greta Garbo, levou uma vida reclusa, com poucos amigos, sofrendo de artrite deformadora e uma crescente senilidade. Aos cinqüenta anos, Louise era uma sombra do que foi, precocemente envelhecida, alcoólatra, esquecida, amargurada, vivendo mal da pensão mensal da Fundação William S. Paley, curiosamente criada e mantida pelo fundador e presidente da CBS, um dos inúmeros ex-amantes de Louise. Mas antes de morrer em agosto de 1987, teve tempo ainda de ver renascer das cinzas o grande mito sensual dos anos 20.
O renascimento se deu por conta do interesse de James Card, curador do Museu Internacional de Fotografia da George Eastman House. O trabalho do sujeito era preservar filmes antigos, principalmente os filmes do cinema mudo, que estavam perto de desaparecer em decorrência da degradação do celulóide. Numa viagem à França, Card insistiu com Henri Langlois – lembram dele, o da Cinemateque Française – para lhe projetar Caixa de Pandora e Diário de uma Garota Perdida (Das Tagebuch einen Verlorenen, também de Pabst), este último sobre uma garota que é acolhida em um bordel, torna- se prostituta e depois monta o seu próprio estabelecimento, um puteiro, claro.
Langlois e Card se deixam seduzir por Louise. O primeiro a escolhe para o cartaz da mostra e profere a frase que decretou a caça dos amantes do cinema por Louise Brooks. O segundo resolveu ir atrás da atriz, que rejeitou a idéia de conversar com o sujeito. Mas ele insistiu tanto que acabou estabelecendo uma profunda e tumultuada amizade que se transformou em romance, o último de Louise Brooks. Card, impressionado com as cartas que Louise lhe enviava a convenceu a ser escritora. Louise Brooks morreu em Rochester em 8 de agosto de 1985, aos 78 anos.