Eunice pegava cedo o ônibus. Começava no Hospital as seis. Vinha às cinco, para chegar antes, para ir adiantando. Sempre tinha sido assim, a vida inteira. Diziam: Essa menina vai longe! Acabou não indo. Não deu para estudar tudo, para continuar. Parou para ajudar em casa. Um dia ia continuar a estudar. Ano que vem. Agora, trabalhava para se manter e para ajudar a família. Trabalhava para juntar dinheiro para casar. Iam casar em março. Juca tinha dito, para que festa? Queria festa, ora! Ia ter.

No ônibus, rostos conhecidos. Conhecia o pessoal que ia sempre ao Hospital. Nessa hora, assim tão cedo, o ônibus servia quase que só o Hospital. Alguns, até conhecia pelo nome. Cumprimentavam, a medida que iam entrando. As famílias que vinham para as consultas regulares. As famílias que vinham sabendo que iam ficar mais tempo. Quase amiga de alguns. Sempre tinha gente nova que aparecia no ônibus. Gente que vinha assustada, olhando os outros passageiros. Os novatos, com envelopes de exames na mão. Os mais antigos, conheciam de cor o trajeto. Eunice ia junto, fazia tudo direitinho como sempre fizera. Achava que fazer direito era tratar bem os outros. As vezes, alguém que nunca tinha aparecido ficava assustado. Já tinha visto gente chorando. Já tinha visto gente passando mal, querendo descer. Eunice não era enfermeira, queria ser, um dia. Nessas horas virava. Ajudava, dizendo calma como achava que as enfermeiras e os médicos deviam dizer: Vai dar tudo bem, vai dar tudo bem. Mais uma parada. Mais gente entrando. Uma senhora fraquinha, uma vovozinha; junto, a mãe, com os exames na mão. Primeira vez, os exames na mão. Trazia o menino, que entrou pulando no ônibus, que passou por baixo da catraca, que em quinze segundos encheu de vida, barulho e bagunça o silêncio do lugar. A vovozinha não dizia nada. Segurava firme a barra do coletivo. A mãe ainda tentava segurar a energia concentrada do menino: Eurico, fica aqui! Eurico! Venha cá, deixa a moça em paz! Largue isso menino. Venha já aqui, cejá vai ver uma coisa!

No Hospital, quando chegou a vez de atender Eurico, Eunice já sabia o nome do menino. Ela e o saguão inteiro. Oi Eurico, disse Eunice. O menino olhou desconfiado. Respondeu com um sorriso sem jeito. O dente torto da frente dava um ar simpático. Eunice era bonita, olhos azuis que realçava com a maquiagem. Que menino lindo! Vai ser um galã! Eurico mais sem jeito ainda, sorriu olhando para baixo. Primeira vez, perguntou Eunice. Primeira, respondeu a mãe. Só respondia. Baqueada, não sorria, não demonstrava emoção alguma. A avó ia junto. Pena da mãe. Eunice não sabia o que o teste dizia. O que o médico tinha dito. Adivinhava. As vezes, pensava que um dia ia se acostumar. Não adiantava, não conseguia. Criança doente, criança morrendo, não devia existir. Se acreditasse em Deus, rezaria por todas, o tempo inteiro. Desde que começou a trabalhar no Hospital, deixou de acreditar. Coisa injusta demais. Se Deus existisse, criança não morria. Não ficava doente. Não sofria. Sabia um pouco o que Eurico ia sofrer. Fazia a sua parte. Tratava bem. Pensava, no fim, um tiquinho de carinho que eu dou ajuda. Essa gente, tão sofrida, tão sem nada. Ajuda, sim, nem que seja um tantinho. Gostou de Eurico, quis ajudar, tratando bem. Que revista que é essa Eurico? De cachorro. De cachorro, você gosta? Ele adora, quer ser veterinário. A primeira vez que a avó tinha falado. Gosto de são bernardo! É mesmo. É. Meu tio disse, vai me dar um filhote, ano que vem, bem grande! Ou um pit bull. Você não tem medo? Eu não! Claro que não tinha. A enfermeira chama: Eurico Santos. Tchau, Tia! Tchau, boa sorte lá. Depois quero ver essa revista!

Faziam quase dois meses. Eurico reapareceu no ônibus. Carequinha, agora. A avó tinha ficado. A mãe vinha junto, abatida. Reconheceu Eunice. Não sabia se cumprimentava ou não. Não cumprimentou, sem jeito, sem jeito com tudo. Eurico deu oi, oi Tia! Saiu correndo para perto de Eunice. Foi sentando no banco ao lado de Eunice. Oi, Eurico! O menininho ficou olhando para Eunice. Eunice percebeu o que faltava, o elogio. Elogio por qualquer coisa. Que lindo esse tênis, Eurico! O menino todo orgulhoso. Olhou pro pé. Meu pai que deu! Eunice lembrou dos cachorros: Onde que está aquela revista que você ia me mostrar? Deixei. Eurico repetiu a estória: Meu tio disse que quando eu sair do hospital eu vou ganhar um cachorro. Um pastor alemão. Ué? Não era um são bernardo? Não, era um pastor. Capa preta. Meu tio disse, quando eu ficar bom. A mãe de Eurico olhando pela janela. Ela, por dentro, no coração, doente igual. Não acreditava mais em muita coisa.

Eurico não voltou para casa aquele dia. Ficou no hospital. Eunice reparou na ficha de internamento. Geralmente, não fazia isso. Por qualquer razão, pelo Eurico fez. Ia fazer mais, queria e sentiu que devia. Um bicho de pelúcia. Um cachorro, grande, com cara de bravo, bem bravo, claro. Um cachorro bravo prum guri valente. Era o que o menino queria, azar se custasse caro! Visitou Eurico, levou o presente. O cachorro de pano virou de verdade. Era agora o cachorro que o tio tinha prometido. Estava lá, afinal. Viu só, mãe, meu cachorro? Então, agora eu vou ficar bom. Quando eu ganhasse o cachorro eu ia pra casa, né, mãe? Eurico na cama. O cachorro de pelúcia ficou no chão. Ganhou nome e vida. Cão de guarda, para não deixar ninguém entrar. Só o doutor, a mãe, a enfermeira, a Tia Eunice. Eunice não disse nada. Foi embora. Na dúvida se tinha feito certo.

Eunice acabou saindo do Erasto. Sofria demais, não agüentava. Arranjou emprego num escritório. Anos passaram, desfez o noivado, noivou de novo, casou, fez faculdade de Direito, teve dois filhos, um casal. Formava-se agora. Queria ser advogada. Domingo, ia com o marido e as crianças no Barigui. O menino, o menor, de um ano e pouco, adorava cachorros. Au-au, Au-au, era quase só isso que dizia. O menininho viu um moço forte, puxando e sendo puxado por um cachorro enorme. Ficou numa agitação só. O marido de Eunice segurou a criança, não sabiam se o cachorro era manso. O moço parou, simpático. Puxaram conversa: Que lindo! Que raça qu’é? terra nova. Manso? Bem manso, pode deixar ele agradar. Eunice, de mão dada com o marido, vendo o filhinho agradar o bicho enorme, bonachão, gentil: Agrade levinho, filho, isso; aí, ai! Que graça, ele. Adora cachorro, tão pequenininho? Como que é teu nome? Fale pro tio, filho. Fale: Eu-ri-co! Meu xará, disse o moço. Sorriu abertamente. Eu também sempre adorei cachorro! A resposta do moço surpreendeu Eunice. Eunice reconheceu o sorriso. O sorriso simpático, o dente da frente ainda torto. Não esperava. Não ia explicar, também. Não ia conseguir. Os óculos escuros esconderam as lágrimas. Um dia, talvez, contasse para alguém. Para alguém que estivesse precisando de uma dose de esperança e quisesse acreditar. .

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br
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