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Rio – O Centro Cultural Banco do Brasil abriu ao público nesta terça-feira a exposição Farnese: objetos, que apresenta 126 peças do artista mineiro Farnese de Andrade. A exposição foi inaugurada junto com a exposição que reúne cem obras do pintor catalão Antoní Tàpies, formando um circuito de arte com três grandes estrelas junto com a mostra do venezuelano Jesús Soto, aberta na semana passada.

Nascido em Araguary, no Triângulo Mineiro, em 1926, Farnese foi aluno de Guignard – estou na Escola de Belas Artes de Belo Horizonte, onde foi contemporâneo de Amilcar de Castro e Mary Vieira – e, em 1964, passou a transformar os restos de madeira e brinquedos que coletava junto com conchas e detritos vindos do mar em obras de arte. Essas obras – assemblages de composições e formatos variados – são o ponto alto do seu trabalho e da mostra no CCBB.

As primeiras caixas de Farnese já misturam bonecos destruídos, mariscos, cacos e bolas de vidro. Embora tenha sido muitas vezes chamado de escultor, o artista nada esculpia; apenas dava tratamento ao mobiliário mineiro de roça que adquiria em fontes diversas (antiquários, feiras e depósito de demolição), misturando-os à "coleção de restos" que reunia nas praias e até mesmo na rua. As imagens de santos também são um elemento recorrente em sua obra. Elas aparecem invertidas, mutiladas ou envoltas em redomas (nas peças mais antigas) ou resina (mais recentes). Sobretudo os santos popularizados pela Umbanda – como Iemanjá, São Jorge e os gêmeos São Cosme e São Damião.

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A exposição do CCBB reúne obras importantíssimas para se compreender a poética do artista, caso, por exemplo, de "Mater" (1990), um pedaço de madeira atravessado por um grosso fio de ferro – que faz o papel de uma espécie de cordão umbilical. Na superfície da madeira, uma foto resinada da mãe do artista e do próprio Farnese, no espelho. É o caso, também, de Araguary (1975/1984), um pedestal de madeira onde Farnese instalou, uma foto de sua cidade natal. Em cima do pedestal, pôs ainda uma cabeça de boneca envolta em resina, como se estivesse boiando em líquido. Ou ainda Anunciação (1984), uma gamela de madeira em cujo fundo o artista acrescentou uma foto de bebê e a forma de um ovo.

– Conheci Farnese em 1994, através do (artista plástico) Siron Franco – lembra o curador da exposição, Charles Cosac, dono da editora Cosac Naify. – Ele tinha um temperamento flutuante, porque era depressivo. Mas gostou de mim e me aceitou assim que me viu porque, como diz o ditado popular "A vaca malhada reconhece a camarada". Tínhamos personalidades parecidas. Ele era muito rigoroso com a própria obra e odiava que dessem a ele peças de presente para formar algum objeto. Passava horas em cada barraca de antiquários da Praça Quinze e ia para a praia catar lixo com o maior critério. Era noturno, muito libidinoso, mas ao mesmo tempo disciplinadíssimo.

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Cosac manteve com o artista uma amizade intensa de dois anos, até a morte de Farnese, em 18 de junho de 1996, onde ele morava, desde os anos 1960, num casarão na Rua Paulo de Frontin, no Rio Comprido. "Não moro embaixo da ponte, mas ao lado dela", dizia ele, numa referência bem humorada ao barulhento viaduto Paulo de Frontin, que enxergava de sua porta. O crítico Rodrigo Naves escreveu "A grande tristeza", ensaio que abre o livro Farnese de Andrade, lançado pela Cosac Naify em 2002. No texto, Naves descreve a sensação perturbadora que podem causar as obras de Farnese:

"Conheço pouca coisa mais triste que os trabalhos de Farnese de Andrade. Essas cabeças de boneca arrancadas do corpo lembram maldades de infância. As madeiras gastas de seus trabalhos guardam um tempo esponjoso, que se acumula sobre s ombros e nos paralisa os movimentos. As fotografias e imagens presas nos blocos de poliéster falam de um passado que nos inquieta, mas que não podemos remover ou processar, já que não mais nos pertence."