Cinema

’50 Tons de Cinza’ mostra cuidado de não chocar público

Por pífio que seja, em sua estreia no Brasil, 50 Tons de Cinza permite recordar esse grande tema, que é o erotismo no cinema. Podemos detectar traços de erotismo desde os tempos do cinema mudo, mesmo que este fosse submetido a forte pressão da censura. Isso para não falar dos filmes clandestinos dos primórdios, pornográficos e explícitos, muitas vezes de tonalidade humorística. Nos anos 1990, uma seleta desses filmetes foi lançada no Brasil em VHS e vendida em dois volumes nas bancas de jornal. Sucesso de público. O que neles se vê faria corar qualquer espectadora de 50 Tons de Cinza.

Mas, claro, esses filmes de diretores anônimos e atores e atrizes escondidos sob pseudônimos, são pontos fora da curva na história do erotismo cinematográfico, até mesmo por seu caráter clandestino. Mais interessantes de observar são aqueles que circulam pela indústria oficial do cinema e, em épocas mais moralistas, se valem de contorcionismos às vezes brilhantes para escapar à censura.

São os casos, por exemplo, de filmes dirigidos por Billy Wilder, um vienense culto e liberal, importado pela careta Hollywood. Algumas de suas comédias respiram um calor sexual próximo da ebulição, embora trabalhem sempre sob a ameaça da tesoura censória. São de tirar o fôlego algumas cenas entre Marilyn Monroe e Tony Curtis em Quanto Mais Quente Melhor. No entanto, nada se vê que seja próximo a uma relação sexual, nada disso. Tudo é apenas insinuado. Em outra comédia com Marilyn, O Pecado Mora ao Lado, Wilder inventa uma cena antológica do cinema para mostrar as pernas da atriz – aquela em que sob um calor tórrido, ela vai se refrescar num respiradouro do metrô e tem a saia levantada pelo vento.

O crítico francês André Bazin, considerado um dos mais importantes do mundo, escreve sobre essa sequência em seu ensaio O Erotismo no Cinema: “Essa cena só poderia ter sido pensada num país com uma cultura censória tão pesada e sofisticada quanto a da sociedade puritana americana”. Quer dizer, quanto maior o cerco moral, maior e mais elegante o esforço do artista em driblá-lo. Daí que, sem que isso sirva de elogio à censura, algumas das melhores peças eróticas tenham vindo à luz em regimes moralmente fechados. Convém lembrar que Hollywood, de 1934 a 1967, era limitada pelo Código Hays, que prescrevia o que podia ou não ser mostrado na tela grande. Mesmo hoje, um filme como 50 Tons de Cinza teve de lutar para escapar à classificação NC-17, em que só maiores de 17 anos podem assistir.

De qualquer forma, os cuidados tomados pela produção de 50 Tons de Cinza devem-se não apenas a essa limitação de faixa etária como ao desejo expresso de não chocar seu pudico público-alvo. Isso, tanto tempo depois da grande revolução de costumes ocorrida entre os anos 1960 e 1970. Antes, os diretores tinham de tomar cuidado com a censura e, com isso, produzir cenas ambíguas como as de Marilyn, ou a do famoso “Strip-tease de luva” de Rita Hayworth em Gilda, ou a de Anita Ekberg banhando-se na Fontana di Trevi em A Doce Vida. Agora podiam dar-se ao luxo da franqueza de O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, ou de O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima.

Nestes, o sexo era quase explícito, e mesmo explícito em algumas cenas. Mas os filmes não tinham a finalidade de excitar espectadores e sim refletir sobre o mal-estar contemporâneo. Se o que ficou na memória de Último Tango foi a “cena da manteiga” entre Marlon Brando e Maria Schneider, o fato é que o filme permanece como um dos melhores na trajetória de um cineasta de ponta, e um dos retratos mais pungentes da angústia do homem atual. Angústia que não falta ao magnífico Império dos Sentidos, sobre uma prostituta que, em desespero, corta o pênis do amante.

O interessante é que na época do seu lançamento mundial, esses dois filmes não puderam circular no Brasil, então submetido à rígida ,censura da ditadura. Falava-se maravilhas de O Império dos Sentidos e lia-se febrilmente a respeito nas revistas especializadas. Quando, por fim, puderam ser exibidos, de fato maravilharam os cinéfilos. Mas decepcionaram os que esperavam deles o erotismo em sua forma mais simples, porque obviamente eram obras que ambicionavam muito mais que excitar voyeurs ou realizar fantasias reprimidas.

Essa decepção se funda, claro, na confusão permanente entre o pornográfico e o erótico, e a distinção entre os dois não se limita a um suposto mau gosto de um e o bom gosto do outro. Talvez se possa dizer que o pornográfico é funcional. Tudo o que importa é despertar o desejo. Já a literatura e o cinema eróticos podem reivindicar a condição de arte. No limite, é possível que excitem, mas seu propósito maior é investigar o desejo, dimensão fundamental do humano.

Tão essencial quanto recôndita, e, por isso mesmo, difícil de ser representada na tela, pois se trata de área tabu da experiência humana, mesmo em época mais liberada. Ainda mais quando reflete sobre aspectos tidos como “anormais” da sexualidade, como é o caso do sadomasoquismo. Lars Von Trier fez um filme incrível sobre o assunto com Ninfomaníaca. E Roman Polanski levou para as telas o romance Vênus das Peles, de Leopold Sacher-Masoch (1836- 1895), que emprestou seu nome à prática. Mas trabalhar nessa corda bamba moral é para cineastas pesos pesados, de tutano e fibra. 50 Tons de Cinza é cinema café com leite. Meio aguado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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