Desde o fracasso da União Soviética em construir uma sociedade mais justa igualitária, nenhum outro sujeito social ocupou o lugar da classe operária como motor de transformações sociais profundas e libertárias. Mesmo assim – e por motivos impossíveis de serem discutidos num pequeno artigo de jornal – a ideia de uma sociedade mais igualitária e generosa permanece no horizonte.

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Com relativa frequência surgem alternativas ao protagonismo do operariado nesse movimento de transformação. Na segunda metade da década de 1970, o Khmer Vermelho cambojano postulava um papel de vanguarda à juventude na criação de um novo homem, na esteira da Revolução Cultural maoista. Só conseguiu produzir uma das mais sanguinárias ditaduras da era moderna.

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As diversas minorias também aparecem frequentemente como possíveis impulsionadores de uma nova sociedade. Elas têm inegavelmente contribuído para mudanças pontuais em leis e costumes, embora sua pouca vocação para o poder – talvez para nossa sorte – não as coloque como alternativa de governo.

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Ultimamente, os artistas – sobretudo artistas visuais – vêm tentando preencher essa “lacuna”, conduzidos por novos Timoneiros, os curadores. Em entrevista à revista Bamboo de setembro deste ano, o curador-geral da 32.ª Bienal Internacional de São Paulo, Jochen Volz, responde da seguinte maneira a uma pergunta da publicação, acerca do mote da exposição, Incerteza Viva, que envolve várias questões contemporâneas, da ecologia ao multiculturalismo:

“É bonito pensar assim (a natureza não como objeto e sim como sujeito). Aqui você tem a ecologia que se desdobrou em micélio (ambiente rico em matéria orgânica), em leis, em bens comuns. Narrativa levou a questões de gênero, feminismo, descolonização, fazendo com que existam outros discursos, e não apenas os dominantes, a serem escutados. Educação é a ideia de valorizar outras formas de conhecimento, de permitir divergências, e está muito presente na discussão, no conhecimento do corpo e das várias culturas do mundo inteiro. E cosmologia trata de inícios e fins, no sentido da incerteza tão elementar que é o ‘de onde viemos e para onde estamos indo?’”.

Não é de estranhar que não haja uma palavra sequer sobre arte nessa resposta. As artes visuais, embora não nomeadas, devem se constituir na nova panaceia universal, a chama que iluminará o destino dos povos. Numa mostra com 81 artistas de vários continentes, não há como ir além de uma breve análise de uns poucos trabalhos expostos.

O veterano Frans Krajcberg há anos vem denunciando a destruição de nossas matas e manguezais. Acredito que esse seu empenho, sem dúvida louvável, é permeado por ambiguidades insolúveis. As intervenções pictóricas e escultóricas em troncos, galhadas e raízes aéreas dizimadas pelos homens ficam perigosamente próximas de um embelezamento da destruição da natureza.

Sem dúvida nossa atuação sobre a realidade tem muito de paradoxal, aproximando grandeza e devastação. Basta pensar nas hidrelétricas de Itaipu ou de Furnas. Nos trabalhos de Krajcberg, falta sobretudo a revelação da potência do mundo natural, apequenado por uma beleza pouco desafiadora. Por esse motivo, os três filmes de Leon Hirszman sobre canções de trabalho têm uma força superior. O trabalho árduo da extração do cacau, do corte manual da cana ou de mutirões para construção de moradias vem acompanhado de comoventes canções que dão ritmo e cadência ao esforço humano.

O cineasta reconhece simultaneamente nessas cenas de trabalho rudeza e encanto, com o que se afasta de uma visão paternalista do povo brasileiro, uma noção quase obscena, porque promíscua, da complexidade de nossa população. Lamentavelmente, essa noção permeia boa parte da Bienal. Nos poucos momentos em que se incorpora com perspicácia a criação das camadas mais pobres das populações mundiais a conquistas da arte moderna e contemporânea, os resultados convencem.

Os estandartes do chileno Felipe Mujica reúnem com força as bandeiras de tantas festas laicas e religiosas a formas de forte ressonância construtivista mais o diálogo com a arquitetura de Niemeyer, tirando ótimo partido de inúmeras questões levantadas pela arte contemporânea.

Alia Farid, uma jovem artista do Kuwait, realizou um vídeo sobre projeto de Oscar Niemeyer realizado em 1963 para uma Feira Internacional em Trípoli – a segunda maior cidade do Líbano e não a capital da Líbia. O projeto tem grande semelhança com o projeto do Parque Ibirapuera, onde está o prédio da Bienal. A falta de recursos e a prolongada guerra civil libanesa tornaram o parque uma espécie de cidade fantasma, e a delicadeza da filmagem lembra o vento assobiando sobre ruínas. Aqui, é a natureza que reivindica seus direitos sobre a intromissão humana.

Há gratas surpresas – ao menos para mim – na mostra. As duas telas do jovem pintor Misheck Masamvu, do Zimbábue, são um oásis para os olhos, em meio à cacofonia de jardinzinhos e casas de barro, muitas delas falsas, com estrutura artificial por baixo. O francês Pierre Huyghe apresenta uma foto e um vídeo instigantes. E os tecidos e desenhos computadorizados da sueca Charlotte Johannesson criam uma rica ambiguidade entre a longa tradição da tecelagem e os pixels de um programa de computador.

Por outro lado, alguns bons artistas (Erika Verzutti, José Bento, Francis Alÿs, entre outros) a meu ver não se saíram muito bem. O desenho da mostra, de Alvaro Razuk, é bom, e consegue aliar uma visibilidade digna das obras à presença do belo prédio de Niemeyer. O trabalho dos mediadores educativos é solícito e com informações precisas. Faltou arte, que é onde realmente nossas certezas são postas em xeque. Ideologias são tigres de papel.

32ª BIENAL DE SÃO PAULO

Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600.

3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.