Foi um ano de muitos paradoxos, no cinema nacional e internacional. No Brasil, "2 Filhos de Francisco" instalou-se, com honra, no posto de maior sucesso de público desde a retomada, há dez anos, mas a média de freqüência aos cinemas que exibem a produção nacional continuou baixíssima. Como qualidade não se mede necessariamente pelo sucesso de bilheteria – mas "2 Filhos de Francisco", de Breno Silveira, é um grande filme -, os outros, entre os melhores nacionais de 2005 permaneceram abaixo dos 100 mil espectadores ou mal atingiram o marco – "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes; "Cidade Baixa", de Sérgio Machado; "Quase Dois Irmãos", de Lúcia Murat; e "O Fim e o Princípio", de Eduardo Coutinho. Quatro belíssimas ficções e um documentário, todos comprometidos em espelhar na tela imagens verdadeiras do País e de seu povo.

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Qual o melhor, qual o que aponta o caminho para o cinema nacional? Toda lista pode ter o seu preferido, mas a grandeza de todos esses filmes está na diversidade, que mostra que os caminhos do cinema brasileiro são múltiplos.

E houve o grande cinema internacional. Política e ideologicamente é necessário falar mal da dominação que Hollywood exerce sobre os mercados de todo o mundo, o que inclui lógico, o Brasil. O ano de 2005 não foi diferente. Nas salas e em DVD, empresas como a Warner contabilizaram sucessos retumbantes, chegando ao fim do ano com uma participação de quase 20% do mercado brasileiro, uma mágica para a qual contribuiu o bruxinho criado pela escritora J.K. Rowling. O paradoxo de 2005 no cinema mundial foi que nunca o cinemão foi tão (auto)crítico. À política e à ideologia, é preciso acrescentar e, talvez, sobrepor a discussão estética.

"Guerra dos Mundos", de Steven Spielberg, e "King Kong", de Peter Jackson, não são apenas grandes espetáculos e provas de que a tecnologia dos efeitos especiais dota hoje os cineastas de ferramentas que ampliam os limites do cinema para muito além do que Stanley Kubrick, em 1968, previa que aconteceria em 2001, o ano mítico da sua odisséia no espaço.

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"Guerra dos Mundos" e o rei Kong. E também o grande cinema alternativo a Hollywood que vem da Coréia, da Dinamarca, da França, de Portugal. "Casa Vazia", de Kim Ki-duk; "Manderlay" de Lars Von Trier; "Reis e Rainha", de Arnaud Desplechin; "Um Filme Falado", de Manoel de Oliveira. E os filmes americanos de um recorte mais independente – "Menina de Ouro", de Clint Eastwood; e "Perto Demais", de Mike Nichols. E os épicos de artes marciais de Zhang Yimou, "Herói" e "O Clã das Adagas Voadoras". Todos muito bons – tão bons quanto os melhores nacionais de 2005. Todos, a partir de agora, integrados ao imaginário dos cinéfilos, habitantes deste país mágico (e sem fronteiras) chamado cinema. É a pergunta que, volta e meia, se faz o espectador crítico, aquele que não quer apenas consumir um filme entre um saco de pipocas e um refrigerante. O cinema é muito mais do que isso. É possível divertir-se num filme-cabeça e entediar-se num desses filmes bobocas, que mal entram por um olho e já estão saindo pelo outro.

Janela para o mundo, instrumento de compreensão (e interpretação) da realidade são definições volta e meia usadas quando se pergunta o que é o cinema. Mas o que é a realidade e como pode ser captada, compreendida e interpretada, se a física quântica viabiliza o mundo de "Matrix" e mostra que nada, mas nada mesmo, é real ou pode ser considerado como tal? As diferenças são imensas – entre Spielberg, Jackson, Oliveira, Gomes e Silveira. Viva a diferença! Numa recente entrevista, Arnaud Desplechin reclamou da divisão entre cinema comercial e de arte. Disse que ela só existe para os latinos. "Reis e Rainha" foi adorado por críticos nos EUA e na Inglaterra, mas eles nunca disseram que o filme não poderia ser desfrutado pelo público de fantasias mais massificadas.

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Há que vencer o preconceito. Se o público de arte não tivesse vencido o preconceito contra os sertanejos – e se o público que adora Zezé di Camargo e Luciano não tivesse superado o estranhamento que lhe causou a estrutura narrativa de "2 Filhos de Francisco" -, o filme dificilmente teria se transformado no fenômeno que virou, no País. Por que ter de escolher entre "Guerra dos Mundos" e "Um Filme Falado", se entre Spielberg e Oliveira se podem lançar pontes? Um critica a paranóia americana, o outro critica o terrorismo árabe e diz, com todas as letras, que o fundamentalismo está destruindo uma grande civilização. As pontes continuam e um pouco dessa grande contribuição dos árabes talvez esteja representada em "Cruzada", de Ridley Scott, no magnífico personagem do sultão Saladino. O antiamericanismo de "Manderlay" fornece um eco para o vazio que consome os personagens de "Perto Demais", todos eles representativos de uma sociedade que se perde no consumismo e na competição, quando não está recorrendo à violência brutal para resolver seus conflitos internos.

É bom falar bem de um diretor que parecia carta fora do baralho, como Mike Nichols. Há quase 40 anos, ele fez um filme-marco, um filme-farol dos anos 1960, "A Primeira Noite de Um Homem", mas depois aceitou compromissos demais em Hollywood, assinando obras certamente indignas do seu talento. Mas ele está voltando – com a sua adaptação de "Angels in America", para TV, e com "Perto Demais", em que se percebe que, em close, ninguém é normal. Inversamente, é triste falar de um grande que está se apequenando, Martin Scorsese. Em "Gangues de Nova York" e "O Aviador", ele se perde na própria megalomania que finge criticar a de Howard Hughes, mais honestamente representado num filme de Edward Dmytryk que, em 1963, era considerado o supra-sumo do kitsch, "Os Insaciáveis".

Entre os paradoxos do mundo global está o fato de um diretor neozelandês de filmes que pareciam de segunda ("Trash – Náusea Total", "Fome Animal" e até "Almas Gêmeas"), ter domado a máquina de Hollywood, utilizando-a para impor um imaginário como nunca se viu igual – Peter Jackson. Pois, no fundo, é disso que trata o cinema. Peter Jackson querendo reinventar o "King Kong" que viu quando garoto, aos 9 anos; Marcelo Gomes querendo contar essa história de dois amigos, um gringo alemão e um sertanejo, que ouviu de seu avô. O coreano Kim Ki-duk contando de forma original a história de um sujeito fora de série, um ladrão que invade casas para consertar as coisas, não para roubar. Quer coisa mais surpreendente? Enquanto houver sonhadores desse porte a grandeza do cinema permanecerá inexpugnável.