Seis anos após anunciar sua aposentadoria, Gustavo Kuerten decidiu colocar no papel sua surpreendente trajetória no tênis. Lançada nesta semana, a autobiografia “Guga, Um Brasileiro” não traz revelações polêmicas como o livro do lendário norte-americano Andre Agassi, mas deve conquistar os fãs com a narrativa recheada de episódios marcantes na vida do catarinense, que se descreve como um menino simples de Florianópolis em busca do sonho de ser tenista.

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Tricampeão de Roland Garros e ex-número 1 do mundo, Guga relembra nesta entrevista exclusiva os inúmeros obstáculos superados, da morte do pai, quando ele tinha apenas 8 anos, às quatro cirurgias no quadril, que abreviaram sua carreira. Também recorda a morte do irmão deficiente, Guilherme, que ainda serve de inspiração para seus trabalhos sociais no Instituto Guga Kuerten.

Sem valorizar as decepções da carreira e com uma capacidade singular de ver o “lado bom” até diante das piores adversidades, o agora pai de duas crianças – Maria Augusta, de dois anos, e Luiz Felipe, de um – aprofunda algumas das histórias da sua biografia, narrada com seu reconhecido jeito simples em colaboração com o jornalista Luís Colombini, se diz surpreso até hoje com a conquista do primeiro título de Roland Garros em 1997 e explica que sua maior contribuição ao esporte foi seu jeito humano em quadra, que teria influenciado tenistas como o suíço Roger Federer e o espanhol Rafael Nadal.

Agência Estado – Como surgiu a ideia de escrever a biografia?

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Gustavo Kuerten – Foi uma ideia que foi amadurecendo ao longo do tempo. Tinha muito receio no início porque não conhecia como seria esse processo. Mas achei que agora era o momento, porque já tinha passado dez anos das minhas conquistas, tinha um bom um distanciamento para falar de uma forma mais justa de mim. Tinha maturidade certa para compreender melhor as façanhas. Fui conhecendo os detalhes que eram fundamentais para que tudo acontecesse na minha vida, desde o início, quando pequenas ações tiveram consequências enormes mais tarde. Quis ir além do tênis, trazendo os fãs para a vida mais cotidiana, com o intuito de aproximar a minha da vida da de um cidadão qualquer, porque eu não me vejo diferente de nenhuma outra pessoa, ainda que minha história tenha sido, sim, diferente.

AE – O que foi diferente em sua história? Você disse que todo dia nascem brasileiros como você. Mas só tivemos um tricampeão de Roland Garros.

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Guga – Esse é o maior estranhamento e essa foi a provocação que eu quis trazer também. Porque dependeu de uma centena de coisas, mas é possível. Por que tudo aconteceu? Desde o início, se meu pai não tivesse me dado uma raquete de tênis antes dos 10 anos de idade, talvez eu não me tornasse o melhor tenista do mundo. Até hoje não me considero um jogador de outro planeta, extremamente habilidoso, fantástico, eu soube utilizar muito as potencialidades de quem me apoiava, do Larri [Passos, treinador], da família, dos outros jogadores. Essa foi minha grande capacidade: absorver e observar tudo que existia para eu me preparar para o desafio que viria.

AE – O que te deu maior prazer ao reviver toda a sua história?

Guga – Foi conhecer um pouco mais a história do meu pai e da minha mãe, como eles se conheceram. E o que causou essa afinidade. Foi também uma tentativa de entender como meu pai vislumbrou que eu seria campeão, que conquistaria o mundo do tênis. Ainda não consigo entender isso. De onde é que ele tirou essa ideia fixa? Foi legal ainda ver quanta gente foi importante na minha trajetória. Eu me amarrei em muitas pessoas, nos familiares, nos professores, nos grandes ídolos, como a geração de prata do vôlei, Zico, Hortência, Joaquim Cruz, ao ver que era possível ter um brasileiro se destacando em nível mundial.

AE – E quais foram as maiores dificuldades na elaboração da biografia?

Guga – A primeira foi: quem vai ser esse cara, que nem conheço, que vai vir aqui e contar a minha vida toda. Eu tinha muito receio. Era muita teoria na minha cabeça. E na hora que fui para parte prática, tudo ficou muito bom. Fui a fundo, investigava de novo e de novo. Às vezes não ficava bom e eu levava três horas revisando apenas um parágrafo. Tive que entender que era impossível encaixar todas as pessoas que mereciam estar nesse, livro. Seguramente em algum momento eu iria esquecer de alguém e tive que aceitar que, infelizmente, teria que ser assim. Acabou sendo muito saboroso. Quando eu entro em um desafio, sempre é muito motivador. Depois do medo do início, terminei o desafio com uma sensação completamente oposta.

AE – Qual foi seu objetivo ao publicar uma biografia?

Guga – Queria transmitir a minha mensagem, que foram os sentimentos que eu vivi. As pessoas tinham um elo muito forte comigo durante a minha trajetória. E muitas pessoas não conhecem minha história antes do título de Roland Garros de 97. Teve momentos muitos difíceis. Quando eu tinha 17, 18 anos, perdi patrocínio e não tinha dinheiro para comprar passagens. A mãe começou a vender mais coisas, cogitou vender a casa [para bancar suas viagens para competir]. Eu vivi isso durante 20 anos da minha vida. Até 95, não estava tão claro que eu seria profissional, eu queria, mas não era certo. Essas dúvidas são muito bacanas, porque me deixa próximo de qualquer ser humano.

AE – Personagem que abre o livro, o russo Yevgeny Kafelnikov foi seu maior rival?

Guga – Foi, porque ele estava lá nas três vezes em que ganhei Roland Garros. Ele, o [André] Agassi e o [Marat] Safin foram os três jogadores com quem tive maior continuidade [nos confrontos]. Na verdade, não cheguei a ter um grande rival porque minha carreira não chegou ao ápice. Uns 60% da minha carreira não aconteceu da forma como deveria ter acontecido. Eu poderia ter jogado umas 15 vezes com cada um deles. Depois contra o Nadal, eu deveria ter jogado umas oito, dez vezes, e o Federer, umas 20 vezes. O Sampras era aquele mais difícil de eu encontrar, até que teve a final de Miami, em 2000, que eu perdi pra ele. Depois, em Lisboa, eu venci. Só que no saibro ele não chegava a tanto, e aí eu não jogava mais com ele.

AE – O título de Roland Garros de 1997 foi mesmo sua maior conquista?

Guga – Foi a maior façanha, foi. Eu não tinha a mínima ideia se eu ia chegar entre os 50, 30 do mundo. Como eu consegui ganhar de vários caras e jogar um tênis convincente por muitos jogos durante aqueles 14 dias é inexplicável para mim. Quanto mais ciente eu fico, mais maduro, mais estupefato eu fico. Não tem como eu ter jogado aquele tênis. Não existe aquilo. Eu poderia ter jogado mais um milhão de vezes naquela época e não aconteceria de novo. Foi um lampejo iluminado. Aquele 97 não era para ter acontecido.

AE – Qual foi sua maior decepção no circuito?

Guga – Foi aquele final de 2001, quando havia uma grande chance de o Master vir para o Brasil. Eu tinha totais chances de me tornar número 1 do mundo novamente. Tinha tudo para acontecer, mas não aconteceu. Não sei se dá para dizer que foi uma decepção, mas foi uma pena. Dá para sentir o gosto da coisa acontecendo. Esse ‘bateu na trave’ aconteceu diversas vezes na minha carreira. Com resultados, então, foram muitos. Mas a grande sabedoria que criamos era botar isso aí para trás, e nem colocar para baixo do tapete, era apagar de vez mesmo.

AE – E na vida pessoal?

Guga – Não sei, me sinto tão agraciado… [pensa muito]. Não chega a ser uma decepção. Mas eu gostaria de ter convivido com meu pai. Quanto às cirurgias e dores no quadril, eu vejo como uma consequência natural, não é um peso. Poderia ser um peso, mas sei que preciso ver diferente isso. Porque é assim que é. Isso facilita enxergar algumas coisas diferentes e até deixar de ver grandes problemas. Eu paro para pensar numa grande decepção na minha vida e não consigo encontrar…

AE – Qual sua maior contribuição para o tênis?

Guga – Acho que é o estado de espírito meu dentro de quadra. É um tênis feliz e contagiante para as pessoas. Não sou um cara de outro mundo, me mantenho normal, como todos aqueles que estão me assistindo mesmo sabendo que ali eu sou diferente. Isso trouxe um impacto que hoje é muito presente nos jogadores. O Federer, o Nadal são muito assim, você conversa normalmente com eles. O cara sabe que é o número 1 do mundo, que tem chances de ser o maior da história e tal, e não muda. Acho que é o caráter humano, com esse envolvimento emocional, que me trazia para perto das pessoas e, consequentemente, todos ficavam envolvidos.

AE – No livro, você diz se arrepender das cirurgias ,no quadril. Elas acabaram com a sua carreira?

Guga – Não acabaram porque eu tive ainda um lampejozinho no circuito depois da primeira. Mas reduziram em pelo menos 50% a minha carreira. Quando eu fiz a cirurgia, era a melhor decisão a ser tomada naquela época. Hoje está comprovado que aquele tipo de operação está falida, que iria me prejudicar. Não é uma leitura de que o cirurgião estava me crucificando. E, sim, de que era o que existia na época e foi mortal para mim. Acabei sendo uma cobaia. Poderíamos ter evitado a cirurgia e esperado uns cinco anos. Mas a gente ficaria esperando, e eu não teria rendimento. Acabaria caindo na mesma vala comum. Então é difícil de ver o “se” neste caso.

AE – E a quarta cirurgia, realizada em 2013. Deu resultado?

Guga – Para o meu dia a dia, sim. Esta última melhorou muito a minha qualidade de vida. Só que, em compensação, eu ainda estou encurralado para praticar esporte. Claro que eu tenho trauma de muita cirurgia e hoje eu não tenho pressa nenhuma para jogar uma partida de tênis ou surfar. Estou muito conservador para não botar em risco essa cirurgia, porque não há outra para fazer. É essa e não tem outra opção. Faz um ano e meio que eu fiz a cirurgia e eu ainda não consigo correr à vontade. Ainda tem um pouquinho de dor. Caminho, sento sem sentir dor. Antes não conseguia. Tinha que sentar e levantar o tempo todo. Hoje já é diferente, mas antes eu conseguia jogar as minhas exibições. Agora ainda não está dando. A consequência ruim está sendo essa. Mas não é desesperador, não. Faz parte do processo.

AE – Ainda sente dor?

Guga – Um pouco. Não dá para dizer que estou isento de dor todo dia. Mas, comparado com o que eu tinha antes, é bem suportável. Ainda não cheguei naquela situação de me desligar do quadril. Só vai acontecer quando eu conseguir me sentir à vontade. Ainda não dá pra ir atrás dos meus filhos correndo. Tenho que ir devagarzinho, me controlando.

AE – Foi muito doloroso reviver a morte do seu pai ao narrar o trauma na biografia?

Guga – Eu tenho uma relação até bem legal com essa perda. Claro que no livro é um pouco dramático porque puxa para penetrar lá fundo no que eu senti. Eu também vivo como se ele estivesse presente. Não tem um buraco, que me causa dor ou sofrimento no dia a dia, pelo contrário. Foram difíceis os primeiros momentos, eu tinha oito anos. Pô, meu pai morreu dentro de uma quadra de tênis. Mas hoje é bem tranquilo, meu pai continua me impulsionando para frente, tanto ele quanto o Gui [o irmão Guilherme].

AE – Na biografia, você revela que seu pai teve dificuldade em aceitar o filho com deficiência nos primeiros anos, situação superada somente depois de um trauma. Como foi narrar essa história sobre aquele que você enxergava como um super-herói?

Guga – Foi difícil no sentido de achar o ponto certo. Porque, mesmo sendo a minha biografia, eu tenho que falar de outras pessoas. E no meu lado, cravar a caneta em mim, só dependia de um pouco mais de maturidade. Mas falar sobras as outras pessoas é mais complicado, como colocar características em pessoas com a minha mãe, meu pai, o Larri. O que me conforta é que eu fui o mais cuidadoso possível. Essa história foi minha mãe que contou para a gente. Eu não cheguei a perceber essa relação do me pai com meu irmão, mas de alguma forma do jeito que eu entendo hoje eu tentei transmitir da forma como eu observei. Acho que não devemos ter muitos arrependimentos sobre as limitações, erros ou decisões erradas. Eu vejo que isso é o aprendizado.

AE – Poucas pessoas conhecem a promessa que Larri Passos fez ao seu pai de que iria cuidar de você em caso de necessidade.

Guga – Para muita gente isso é uma novidade. Foi um episódio fatídico para continuidade da minha vida, não só da carreira. E eu fui descobrir isso mais para frente. Com oito anos eu não sabia disso. Tem muita gente que conhece minha vida, mas lendo o livro vão conseguir entender melhor.

AE – Você se aposentou em 2008 depois de três cirurgias que não resolveram o problema em seu quadril. Foi difícil abandonar as quadras desta forma?

Guga – Lidar com a aposentadoria não foi nada difícil para mim, porque fui obrigado a parar ,de jogar. Não tinha mais como eu jogar. Por um lado foi bom, porque eu fui até o máximo para jogar. Foi uma consequência natural e o quadril acabou me ajudando. Não teve um desespero, um receio. O tênis é fundamental para mim, mas ao meu redor tenho outros interesses que são essenciais para minha vida.

AE – O que passa por sua cabeça quando é comparado a figuras como Pelé e Ayrton Senna?

Guga – Hoje é um pouquinho mais fácil de ouvir isso, né. Nas primeiras vezes, parecia até que era brincadeira. Eu levava para o lado da brincadeira para não ficar apavorado. Agora, com o decorrer do tempo, é mais fácil aceitar algumas condições de idolatria da minha carreira. Envolvi muita gente, todo mundo se sentia vitorioso com as minhas conquistas. Tínhamos uma carência [de heróis] no Brasil. Eu apareci três anos depois da morte dramática do Senna. O Brasil estava louco para ter alguém que o representasse mundialmente, alguém que se pudesse saborear semana a semana. E, além disso, surge alguém que falava a língua do povo, que é feliz, bacana, que ganha dos americanos, dos europeus, e vira o melhor do mundo. É um baita de um orgulho essa comparação, algo especial, e também acho que me condiciona a esse vínculo com meu povo. Sou muito brasileiro, gosto das coisas que tem aqui.