Xavier – Gilberto, como você foi entrar nessa?
Gilberto Gaertner – Iniciei o trabalho de psicologia do esporte ao entrar na faculdade de psicologia. Fui atleta de karatê e técnico também. Oficialmente, ingressei na seleção brasileira de karatê em 1994, preparando a seleção para o Mundial daquele ano. A seleção teve um bom resultado lá, e a partir daí dei sequência ao trabalho.
Hoje, atendo atletas de karatê, natação, vôlei e tênis. No vôlei comecei há quatro anos.
Xavier – Como foi?
Gilberto Gaertner – O José Inácio (Ferreira), então preparador-físico do Rexona, treinava karatê na minha academia. Ali tivemos o primeiro contato. Depois de conhecer o Bernardinho, comecei trabalhar no Rexona e em seguida com a seleção feminina permanecendo para o time masculino.
Cristian – Tem o lado técnico e o motivacional. Essa transição ajudou ou atrapalhou o trabalho no vôlei?
Gilberto Gaertner – Na área clínica, trabalho com psicoterapia corporal. Em empresas, como consultor organizacional. Sinto que meu trabalho é um “mix? disso tudo. Tem muito da psicologia clínica, da psicologia do esporte e da experiência de atleta. A adrenalina que o atleta sente nas competições me contamina, pois já senti isso. Como atleta e como técnico.
Xavier – É mais difícil lidar com o atleta do esporte individual ou do coletivo?
Gilberto Gaertner – São coisas delicadas. Nos individuais, os atletas necessitam de uma capacidade de concentração muito maior. Na natação mais ainda, pois ele nada sozinho, às vezes por 1.500 metros. O treinamento mental precisa ser muito intenso para ele se manter motivado e suportar dor, cansaço, ultrapassar limites.
No esporte coletivo, há uma divisão de responsabilidades, a dificuldade que a gente tem é harmonizar os grupos. Transformar time em equipe. Criar uma sintonia para que todos estejam trabalhando em função da equipe. A coesão é um fator fundamental no esporte coletivo.
Cristian – Nesse ponto é mais fácil trazer um grupo coeso para conquistas ou criar uma coesão?
Gilberto Gaertner – As duas coisas são viáveis. Quando o grupo é harmônico demais a gente tem que gerar uma desarmonia para criar o “movimento? extra no grupo, evitando uma acomodação. É preciso criar grupos com motivações variadas. Você pode partir de um grupo técnico para torná-lo coeso.
Veja o exemplo da seleção masculina. Lá a gente trabalha com variáveis diferentes do Rexona. A gente lida com salários mais altos, prêmios mais altos. Na seleção os egos são muito mais fortes. Para colocar todos dentro de uma só quadra é difícil. Nosso trabalho foi nesse sentido. Todos são estrelas, têm bons salários. Têm muitos horizontes pela frente e objetivos diferentes também.
Aqui, no Rexona, a gente tem uma cultura de formação de atletas. O trabalho tem que ser para a equipe cresça aos poucos, durante a competição.
Xavier – O Giovane deu uma entrevista depois do mundial dizendo que depois de velho (termo dele) descobriu que titular não é aquele que começa. Titulares são aqueles que participam.
Gilberto Gaertner – Eu até lembro de um amistoso contra o Japão, quando o Giovane e o Maurício ficaram na reserva e os dois se colocaram como dois meninos se aquecendo o tempo todo na posição de reserva. Depois, eu fui conversar com eles e dizer que fiquei muito impressionado. Só que o vôlei é diferente do futebol. O reserva entra muitas vezes e decide. O reserva tem uma importância fundamental. Primeiro para exigir do outro nos treinos, esforço de todos.
No primeiro encontro que tive com o grupo masculino, a gente teve uma conversa e eu perguntei como eles lidavam com partidas importantes. Muitos deles, que eram banco, disseram que entravam tranqüilos porque iam estar no banco. Foi ai que a gente partiu exatamente para trabalhar à importância de todos. Mentalmente o reserva tem que estar no jogo o tempo todo, mais do que quem está em quadra, porque se entra desaquecido e erra, a entrada dele não serviu para nada. Se entra, é para fazer melhor que o titular.
Andréa – Como é seu trabalho na prática. Com os atletas?
Gilberto Gaertner – A primeira coisa é fazer um perfil individual e do grupo e um diagnóstico. Aí, a gente trabalha as necessidades do grupo.
A seleção brasileira, por exemplo, era um grupo racional. Tinha uma necessidade de ter um fator emocional ampliado. O time era muito frio, racional. Para enfrentar Rússia, França, Itália e Iugoslávia, tivemos que trabalhar para alcançar mais de 100%. Tem que usar tudo o que o atleta tem e mais um pouco. Usar o máximo da potencialidade cognitiva, o máximo da potencialidade emocional, e o máximo da potencialidade técnica.
Os jogos contra Rússia e Itália foram muito difíceis. Trabalhamos muito o lado mental de saque e bloqueio, com o atleta treinando mentalmente o gesto técnico.
O atleta é visto como super-herói, mas no fundo, tem problemas como qualquer ser humano.
Márcio – Como nasceu sua relação com o karatê, e o que pode falar sobre os dois campeões mundiais que dirigiu?
Gilberto Gaertner – Foi uma opção feita pela vida. Eu tinha 13 anos e acabei brigando num armazém com uma pessoa mais velha, e levei um direto no queixo e desmaiei. O meu pai então disse para eu treinar uma arte marcial.
Treinei judô e karatê. Há 33 anos eu estou envolvido com karatê, e ele sempre foi pra mim uma coisa muito forte. Um diferencial para a vida. Pratico todos os dias.
Sobre os atletas, aqui no Brasil, tivemos até hoje, no karatê tradicional, três campeões mundiais individuais. Tive a satisfação de dirigir dois deles: a Jordana de Souza, campeã em 1994; e o Ricardo Buzzi, campeão mundial em 2002, na Iugoslávia – o primeiro campeão brasileiro masculino individual. São coisas gratificantes.
Hoje, temos além dos dois campeões mundiais, outros cinco campeões pan-americanos, que também são nossos alunos, formando um grupo de elite no Paraná. Além disso, temos o Projeto Karatê Pia no Esporte, atendendo 27 mil crianças em 250 municípios do Paraná. É um trabalho interessante, com um resultado bastante significativo.
Irapitan – O vôlei é um esporte cujos atletas têm um melhor nível cultural e educacional?
Gilberto Gaertner – Teoricamente. Quando o vôlei assumiu o segundo lugar na preferência nacional, passou a ter salários maiores. Pessoas de menor escolaridade, mas com potencial esportivo, migraram para o vôlei. É o caso do Escadinha, que saiu de uma família humilde e hoje transformou sua vida.
Marcio – Então não existe uma grande diferença entre o vôlei e o futebol?
Gilberto Gaertner – O nível de escolaridade do vôlei ainda é um pouco mais alto, na média. No Rexona temos apenas uma atleta cursando o terceiro grau. A gente trabalha com as outras para que o nível cresça, e elas se preparem para a fase pós-atleta.
Andréa – Hoje em dia é fundamental um psicológico na comissão técnica?
Gilberto Gaertner – O esporte de alto nível hoje não sobrevive sem a psicologia do esporte. Não que ela vá ganhar jogo, mas complementa o trabalho de preparação física, técnica e tática.
Todos eles fecham um eixo de sustentação de qualquer equipe de alto nível. Todos treinam muito. Então não tem mais timinho, todos são bons. O diferencial está na chegada e se a pessoa não tiver controle emocional, preparação psicológica, não chega bem.
O esporte de alto nível é estressante como a profissão de jornalista. Tem exigência e cobrança diária. Ele tem que ter um espaço para lidar com o estresse. Senão, isso aparece na quadra, no campo. Eu sinto que a exigência do trabalho de psicologia é cada vez maior. O que nós não temos aqui ainda é uma cultura de psicologia do esporte.
Márcio – Existem exemplos disso em outros lugares do mundo?
Gilberto Gaertner – Os EUA trabalham com isso há muito tempo. Rússia, Cuba, a Alemanha e o Brasil tem se desenvolvido. É interessante porque a psicologia do esporte é antiga aqui no Brasil. Na Copa de 58 nós tínhamos um psicólogo. O que se lembra dele, João Carvalhais, é que a única coisa que ele fez foi reprovar Garrincha num teste psicológico. Tivemos um início meio cômico. Hoje, a USP tem pesquisas interessantes. Em Minas, no Rio Grande do Sul e aqui.
Andréa – Como é que foi para o Rexona a saída do Bernardinho para assumir a seleção?
Gilberto Gaertner – Houve uma mudança de atletas também. Este ano está muito mais minimizado porque o técnico Helio Griner escolheu as atletas que queria. No primeiro ano essa transição não foi muito confortável. Mas esse momento foi superado e agora está tudo bem.
Cristian – Para os leigos, ioga e karatê são coisas totalmente diferentes. Em que momento se unem e em qual se separam?
Gilberto Gaertner – Eu acho que uma coisa complementa a outra. O karatê é uma prática mais forte e o ioga um trabalho mais sutilizado. Pra mim foram coisas que se completaram muito bem, porque no karatê lido com minha agressividade. No ioga, lido com concentração, introspecção e relaxamento. Então, pra mim, as duas coisas são complementares. E no trabalho também, pois ambas atividades me dão equilíbrio para lidar com a vida.
Márcio – Estamos falando de karatê, e existem duas vertentes de karatê, você poderia explicar isso?
Gilberto Gaertner – Existem duas grandes e várias outras. Mas essas duas são as mais importantes, a WKS, que tem um karatê mais esportivo com uma intenção olímpica forte. E o karatê tradicional, a IPFK, que trabalha um karatê mais voltado às origens tradicionais, mas conectado com o aspecto filosófico da arte. E o nosso programa é baseado substancialmente na filosofia do karatê, e trabalha muito a técnica alicerçada na filosofia. O karatê tradicional está mais voltado para a defesa pessoal do que para a competição.
Márcio – Como é trabalhar em esportes (karatê – vôlei), que são coadjuvantes no cenário nacional?
Gilberto Gaertner – O vôlei ainda ganhou espaço grande, graças aos últimos títulos, no Brasil tem boa notoriedade. Mas é óbvio que o futebol ganha os grandes espaços.
No caso do karatê, é mais difícil conseguir espaço em termos de mídia. Primeiro porque não há um interesse muito grande e segundo porque a gente não tem uma profissionalização em termos de divulgar sistematicamente.
Mas temos ações ímpares no Paraná, como o projeto Karatê Piá no Esporte, o maior projeto do mundo utilizando o karatê como instrumento sócio-educacional. Nós criamos o programa e estabelecemos uma parceria para poder implantar, senão não tinha como fazer. Ela é uma iniciativa da Federação. Hoje, nós temos uma pesquisa concretizada, que tem dados interessantíssimos.
Por exemplo, nesse programa 80% das crianças entre as 27 mil atendidas, são de famílias com renda de até 2 salários mínimos. Nós tivemos um índice de melhora comportamental de 74% da população atendida – índice altíssimo. Nós temos dados científicos que deixam muito claro que o projeto é um instrumento de transformação. Da mesma forma que o programa do voleibol também tem índices altos, e todas as tendências da pesquisa feita no karatê, se repetiram no voleibol. Você consegue tirar as crianças da rua, canalizando as energia delas construtivamente, e dar um caminho a elas.
Nós usamos uma amostragem em 1.102 crianças, para descobrir talentos esportivos no karatê. E nós identificamos oito talentos de alto nível. O que é um índice altíssimo, porque se a gente for multiplicar pelo número de crianças, nós vamos ter mais de duzentos talentos esportivos nas crianças de baixa renda no Paraná.
Informalmente nós já fizemos um contato com esses oito atletas, que hoje fazem parte da seleção brasileira, e nós estamos pensando na possibilidade de trabalhar com essas duzentas crianças, fazendo uma ponte entre os oito talentos.
Cristian – O que é pior: não ver o projeto, o karatê ou o vôlei não ser divulgado?
Gilberto Gaertner – Eu sinto que hoje a gente caminha pra uma necessidade muito maior de se trabalhar o social. As empresas hoje estão tendo uma necessidade de trabalhar socialmente. A sociedade como um todo tem que lidar com as diferenças de distribuição de renda que a gente tem no nosso país. Nós temos que lidar com a violência que impera na nossa sociedade. Eu acho que nós temos nas mãos, instrumentos comprovadamente capacitados e implantados que servem perfeitamente a isso, e que podem ter uma escala nacional.
Hoje, somos referência em muitas coisas no Paraná. E eu acho que esses dois programas (karatê e vôlei) são programas de excelência e são programas que devem ser vistos e divulgados nacionalmente pelos resultados que apresentaram. Uma criança custa nesse projeto R$ 3 reais ao mês. É uma brincadeira. Nesse nosso programa, nós fornecemos os instrutores, o aperfeiçoamento deles e o gerenciamento do pessoal. O Estado, através da Secretaria, entra com o pagamento dos professores, e as prefeituras com as instalações e com alimentação. E tem muitas crianças nessa pesquisa que foi feita, que relataram que só se alimentavam lá.
Cristian – E isso gratifica mais do que ser campeão do mundo?
Gilberto Gaertner – Sem dúvida nenhuma. Eu acho que quando a gente vê essas crianças podendo ter algum horizonte, isso é muito mais importante do que qualquer título, do que qualquer medalha, porque daí a gente está falando de vidas humanas que estão mudando, e até então não teriam e outro caminho senão a marginalidade.
Irapitan – Quantas cidades estão nesse projeto?
Gilberto Gaertner – No karatê são 250 cidades de todo o Paraná. E agora nós vamos negociar com o novo governo exatamente a continuidade de ampliação do projeto.
Irapitan – E esse é seu grande projeto de vida?
Gilberto Gaertner – Sem dúvida. E quando a gente pode canalizar isso, aí entra a questão da psicologia no esporte, que não entra somente no esporte de nível, mas também em qualquer atividade esportiva.
Márcio – Você gostaria de trabalhar com o poder, numa função pública, em que você pudesse fazer uma mudança social através do esporte?
Gilberto Gaertner – Eu gostaria de trabalhar com possibilidades sociais no esporte, não necessariamente ligado ao poder.
Cristian – Gilberto por Gilberto?
Gilberto Gaertner – Eu diria que o meu momento de vida hoje é o trabalho.