Torcedores que cometem atos racistas precisam ser banidos dos estádios e clubes e federações precisam agir de forma dura para impedir que “o futebol seja destruído” por essas pessoas. O alerta é do chefe de arbitragem da Fifa, o suíço Massimo Busacca.
Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada nesta segunda-feira, em seu escritório, em Zurique, o ex-juiz deixou claro que a forma mais eficiente de lidar com os episódios de discriminação no futebol é retirando de campo os autores desses crimes. “Os clubes e federações sabem quem são esses torcedores e até onde estão sentados nos estádios. Por que deixam entrar?”.
Para ele, suspender um jogo ou um time e obrigar clubes a atuar sem público não pode ser a primeira alternativa de combate ao racismo, ainda que o expediente deva ser usado sempre que os incidentes forem registrados.
“Mas, se apenas fizermos isso, estaremos dizendo a esses racistas que eles estão vencendo o jogo”, disse. “Quando precisamos suspender um clube ou uma torcida, é necessário que fique claro que o futebol perdeu. Clubes e federações precisam agir antes. Eles sabem quem são essas pessoas.”
Árbitro da Fifa entre 1999 e 2011, Busacca esteve em duas Copas do Mundo – 2006, na Alemanha, e 2010, na África do Sul. Dirigiu a final da Copa das Confederações de 2009, entre Brasil e Estados Unidos, e finais da Liga dos Campeões.
Hoje, cabe a ele preparar os árbitros para as Copas do Mundo. Como representante da Fifa, o chefe de arbitragem afirma que está convencido de que a linha adotada pela entidade é a mais correta e que a organização está lutando com todos os seus meios para combater o racismo.
Para Busacca, a Fifa simplesmente “não aceita” qualquer tipo de discriminação em campos de futebol:
ESTADÃO – Qual a orientação aos árbitros para lidar com os casos de racismo no futebol?
MASSIMO BUSSACA – Antes de mais nada, precisamos falar da mensagem. Como é possível que, em 2014, uma pessoa ainda julgue a outra pessoa pela cor da pele? É algo incrível que as pessoas ainda possam fazer críticas com base na cor da pele. Respeite as pessoas porque você não será julgado por sua cor, mas pelo que você fez a outras pessoas. Para mim, essa é a mensagem mais forte, antes de falarmos sobre suspender um jogo. Antes de pensarmos sobre punições e no que um árbitro pode fazer durante um jogo, ele precisa mandar uma outra mensagem: cuidado, um dia você também será julgado e aí será difícil ser respeitado.
ESTADÃO – Mas nem sempre as medidas preventivas conseguem impedir os atos racistas em campo. O que deve acontecer se isso for identificado?
MB – Falamos muito em respeito. Mas é verdade que, quando algo acontece, precisamos reagir. O juiz precisa entender e olhar essa situação com muita atenção. Ele precisa entender o que foi dito, de onde está vindo e, como em outra ocasião, precisa exigir o respeito pelo jogo, pelo esporte, como qualquer falta ou momento que possa destruir um jogo. Existem situações em campo que podem destruir o futebol e a situação de discriminação e racismo é uma das que podem destruir o esporte. Por isso, os árbitros precisam ter muita atenção a isso. Claro, nós precisamos reagir e pensar: o que fazer agora?
ESTADÃO – E qual deve ser essa reação?
MB – Se houver imediatamente a suspensão de um jogo, estamos dando a opção às pessoas que cometem esses atos de dizer que eles conseguiram o que queriam, que era destruir o jogo. Essas pessoas vão aos estádios para destruir o jogo e esse é o único objetivo. Isso significa que, numa partida com 80 mil pessoas, 79 mil pessoas são justas e desfrutam do jogo e, por mil idiotas, temos de todos ir para casa? Por isso, antes de suspendermos o jogo, precisamos ter uma estratégia. Todos sabem onde as pessoas que cometem esses atos racistas estão no estádio.
ESTADÃO – Clubes e federações sabem que essas pessoas vão aos estádios. Precisamos fazer um chamado às federações que sabem quem são essas pessoas? Por que as deixaram entrar?
MB – Por que deixaram destruir o futebol? Elas sabem onde estão e até onde se colocam nos estádios. Façam algo. Não permitam que essas pessoas entrem nos estádios e que destruam os jogos dos demais.
ESTADÃO – Qual o impacto disso?
MB – Isso é a prevenção. Se eu sei quem eles são e até onde se sentam nos estádios, por que não tomo a iniciativa de individualizá-los e retirá-los? É para o benefício de todos. Precisamos informar as pessoas de que tal comportamento é inaceitável e que não será aceito que alguém critique outra pessoa por sua cor da pele.
ESTADÃO – Às vezes clubes e mesmo federações são reféns desses torcedores…
MB – Sim, às vezes sabemos que uma federação ou um clube dizem que aqueles torcedores são importantes para eles. Mas, se quisermos parar com o racismo nos estádios, esse é mais de 90% do caminho para diminuir o número de casos.
ESTADÃO – Mas o árbitro deve ter o poder de parar um jogo caso esses atos ocorram durante uma partida de futebol?
MB – Claro que temos de parar um jogo se isso acontecer, como em qualquer outra situação de perigo para o esporte. Isso deve ocorrer principalmente se um ou mais jogadores sentem que não podem mais continuar na partida. Mas, quando reagimos dessa forma, precisamos lembrar que alguém perde e a realidade é que quem vai perder é o público por causa de alguns idiotas. Eu, como árbitro, não quero ser obrigado a fazer isso. Claro, quando não há mais condições, precisamos parar tudo e ir para casa. No final, esse é o caminho. Mas suspender um jogo não pode ser a primeira alternativa. Isso seria dar a vitória às pessoas que cometeram os crimes. Se fizermos sempre isso, eles vão rir e dizer: “Nós conseguimos o que queríamos”. São pessoas que sequer estão olhando para o jogo e não estão nos estádios pelo futebol.
ESTADÃO – Tivemos casos de clubes que foram punidos com a retirada de pontos, eliminação de campeonato e jogos em estádios sem público. Qual é a responsabilidade dos clubes?
MB – Os clubes precisam tomar medidas. Agora, se nada é feito, o clube precisa ser punido. Há, portanto, a possibilidade de suspender um clube. Mas é o último passo. Eu insisto: os clubes sabem onde estão os torcedores baderneiros e quem eles são. Portanto, não há como dizer que não podem fazer nada. Se nada acontece, o clube precisa ser individualizado e suspenso por não respeitar o contexto esportivo. A companhia deve pagar. Agora, eu preciso dizer que eu já apitei um jogo na Espanha em um estádio vazio. Aquilo não era mais futebol. Não havia nada. Não havia mais emoção. Eu me perguntava: isso é um jogo de futebol? Quando precisamos suspender um clube ou uma torcida, é necessário que fique claro que o futebol perdeu. Clubes e federações precisam agir antes. Eles sabem quem são essas pessoas.
ESTADÃO – O que deve ser feito quando um jogador atua de forma racista contra outro em campo?
MB – Se o árbitro ouvir, é como uma falta grave. O árbitro precisa reagir e é automático. Entra como atitude não esportiva. Agora, é preciso dizer que é difícil saber quando isso ocorreu. Aconteceu uma vez comigo num jogo. Um jogador provavelmente ofendeu com termos racistas um outro. Mas eu não ouvi. Quando apitei o fim do primeiro tempo, o jogador que foi ofendido ficou no túnel esperando o adversário e, quando ele passou, lhe deu um murro. Eu não tinha ouvido a ofensa inicial e não poderia punir a ação anterior. O que ocorreu é que o jogador que reagiu e deu o soco pegou 20 jogos de suspensão e até decidiu abandonar a Suíça. O jogador que teria ofendido jamais confessou e nunca foi punido. Por isso, eu sempre digo que a punição a uma provocação deve ser mais dura do que a punição à reação. Mas isso é a parte mais difícil de ver num jogo.