Depois de nove anos “enxugando gelo”, como define seu trabalho contra a violência das torcidas organizadas no futebol paulista, o promotor Paulo Castilho, do Juizado Especial Criminal, decidiu dar uma cartada decisiva: pediu ao governo paulista a efetivação da criação do Juizado do Torcedor, como parte de uma política de Estado para combater a violência.

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A proposta foi entregue ao secretário estadual de Segurança Pública, Alexandre Moraes, numa reunião há dez dias. Moraes, de acordo com Castilho, se sensibilizou com a proposição.

“Agora, ou vai ou racha. Ou nós transformamos isso numa política de segurança pública de Estado ou eu estou fora”, garantiu ao jornal O Estado de S. Paulo na sexta-feira, em entrevista na sua sala do Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.

Uma sala acanhada. Uma mesa – empilhada de processos que nada têm a ver com o futebol -, um computador, camisas de clubes, inclusive do seu XV de Piracicaba na parede, bem como diplomas e recortes de entrevistas concedidas.

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Casado, três filhos adolescentes, 47 anos, Castilho está disposto a continuar “chegando junto”, como nos tempos de zagueiro do juvenil do São Paulo, em que era treinado pelo uruguaio Pablo Forlán, do XV de Jaú e do Olímpia, que defendeu como profissional até ter um problema físico que o fez parar ainda jovem. Desde que tenha um mínimo de estrutura que lhe permita fazer um trabalho que efetivamente dê resultados. Confira a entrevista exclusiva com o promotor, publicada nesta segunda-feira no Estadão.

Estadão – Como funcionaria esse Juizado do Torcedor dentro do contexto da política de Estado contra a violência no futebol?

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Paulo Castilho – Nós precisamos que esse Juizado do Torcedor conheça todos os aspectos ligados à violência de torcidas para poder tomar decisões e que tenha a competência ampliada para todos os crimes que ocorrerem conexos ao futebol. Excetuados os crimes contra a vida porque aí vai ao Tribunal do Júri.

Estadão – Mas como seria a estrutura?

PC – Teríamos um juiz que conheça essa especificidade do futebol, um especialista. Ele vai saber julgar. Nós teríamos um promotor também com poder e competência e estrutura, com funcionários, telefones, carro… Precisamos ter o Juizado do Torcedor encorpado, com estrutura e poder, a delegacia trabalhando, o promotor. Assim o Estado estará dizendo que vai acabar com a violência no futebol.

Estadão – Essa sua proposição do estabelecimento de uma política de Estado significa

nova fase?

PC – Ou vai ou racha. A proposta foi levada às mãos do secretário de Segurança Pública, doutor Alexandre de Moraes, e ele captou na hora. Ou nós transformamos isso numa política de segurança pública de Estado ou estou fora. Entrega para a torcida organizada. E vai ser cada vez pior. Eu apurei que 2015 vai ser o pior ano em termos de violência das torcidas organizadas. E não é só São Paulo.

Estadão – O que o senhor quer dizer com “estou fora”?

PC – É o seguinte: não vou deixar de fazer meu trabalho. Não vou me omitir. Eu sou promotor titular do Jecrim (Juizado Especial Criminal), que tem como anexo o Juizado do Torcedor. Chegando aqui o processo de uma briga no estádio eu vou atuar. O que digo é que não irei além dos meus limites.

Estadão – Deu prazo para implantar essa política? Porque também depende de vontade política…

PC – Tem prazo para ele (Alexandre) me dar o sinal verde ou não. Se daqui um mês não me der o sinal verde, vou entender como sinal vermelho. Mas tenho certeza de que ele vai me dar a resposta (positiva).

Estadão – E se o sinal for vermelho?

PC – Aí eu ficarei tranquilo com meu expediente (como promotor criminal), me dedico mais à minha vida pessoal e familiar.

Estadão – Qual o poder das organizadas?

PC – Eles estão poderosos, estão se mobilizando, movimentando muito dinheiro, tem torcida que este ano vai movimentar mais de R$ 10 milhões. Eles já fazem os clubes de refém. Estão se infiltrando nos clubes. Primeiro ficaram sócios, agora são conselheiros, já tem até cargo de direção. Isso ocorre por omissão do Estado, que não está impondo limites para eles.

Estadão – Uma das formas de se combater organizações criminosas é asfixiá-las financeiramente. Pode-se fazer isso com as organizadas?

PC – Tem maneiras, e muitas, de mexer no bolso, na movimentação financeira, de mexer na parte criminal, na parte cível… Com essa equipe (do Juizado) trabalhando com o poder do Estado, nós vamos implantar uma fiscalização tributária na movimentação financeira dessas torcidas. Fiscalizar as lojas em que eles têm o comércio. Podemos pedir a vigilância sanitária que verifique se os lugares estão de acordo, ao Corpo de Bombeiros se deu o alvará, podemos pressionar a prefeitura que dá a concessão para essas pessoas terem a quadra. É uma receita muito grande que eles têm, principalmente dos ingressos que são custeados pelo clube. Eles organizam as caravanas e vendem os ingressos.

Estadão – O senhor fala que seu trabalho é enxugar gelo. Essa, de certa forma, é a impressão geral, pois já tivemos vários assassinatos nas últimas décadas e não há ninguém condenado e preso…

PC – Já passaram com certeza de 200 (as mortes). Não ocorrem menos de cinco mortes por ano. E não é só prisão, que é aquela medida que choca, causa impacto. Eu posso falar com toda tranquilidade que 99,9% da violência no futebol é causada pela torcida organizada. Mas, quando se vive de uma ação isolada, como fiquei nesses dez anos, dando a cara para bater sozinho, não se tem uma questão institucional, não tem estrutura. Aí gera essa sensação de impunidade.

Estadão – Mas como vai ser o funcionamento do Juizado na prática?

PC – Toda a violência no futebol tem as suas peculiaridades, tem necessidade de agilidade. Chega a informação hoje de que amanhã está indo um ônibus com arma numa emboscada. Se não for um juiz que conhece essa especificidade do futebol, você vai entrar com um pedido de busca e apreensão e não vai dar em nada. Quantas vezes o juiz já negou (busca) em sede com a gente sabendo que tem arma lá?

Estadão –– Como será a fiscalização dos torcedores organizados?

PC – Com o Estado dizendo que vai acabar com a violência no futebol, o que nós vamos fazer? Vamos levantar 50, 100 líderes da Gaviões, da Independente… Vamos acompanhar esses caras. Levantar onde mora, trabalha, antecedentes, se tem mandado de prisão, se está envolvido com o crime, do que vive…

Estadão – Haverá cadastramento?

PC – Vamos cadastrar essas pessoas. Vamos exigir que o Estado faça um convênio com o RG dele. O novo RG vai ter identificação facial, digital, a gente faz um cartão e aí se tem toda a identificação dele, que vai ser a identificação de acesso ao estádio.

Estadão – O senhor e sua família sofrem ameaças?

PC – Nós tomamos alguns cuidados, temos uma cautela maior, tivemos alguns sustos. Hoje eu me tornei uma pessoa pública. As pessoas sabem quem eu sou, mas não sei quem são eles. Acredito que me respeitem, porque sempre fui uma pessoa transparente. Eu tenho a consciência tranquila, mas a gente tem uns percalços no caminho.

Estadão – O que o senhor faz nas suas horas livres?

PC – Eu gosto muito, muito mesmo, de estar com meus filhos, fazer um churrasquinho, uma caminhada, tomar um sol… Não assisto jogos de futebol.

Estadão – Voltando às organizadas…

PC – O que acontece hoje é que aonde eles estão o torcedor comum não está. Torcedor de bem hoje não está indo mais ao estádio..

Estadão – O caso Palmeiras e Corinthians (o MP tentou realizar jooo com torcida única e foi criticado) foi a gota d’água para o senhor?

PC – Foi. Decidimos não nos expor tanto (ele e o promotor Roberto Senise). Nós queremos atuar no contexto macro e não pontualmente.

Estadão – O senhor tem convicção de que é mesmo possível acabar com a violência no futebol?

PC – Fácil! É só o Estado querer. Só que contraria muitos interesses. Nós temos deputados, vereadores eleitos por torcida organizada. Tem a paixão do clube. Por isso eu falo que tem de ser especialista (para trabalhar com o tema). Tenho convicção de que é possível terminar com a violência porque a gente sabe onde está e sabe as causas. Só precisa ter solução. Acabar com a impunidade, fazer o cadastramento, o monitoramento de controle de acesso.

Estadão – O senhor trabalhou no Departamento de Defesa do Torcedor no Ministério do Esporte. Foi frustrante?

PC – Fiquei dois anos, fui o primeiro diretor do Conselho de Defesa do Torcedor do ministério (entrou na época do ministro Orlando Silva). Saí porque quando cheguei existia um projeto, que já tinha sido licitado, discutido, de implantar o controle de acesso. Ia ser implementado com o cartão do torcedor. A ideia era de que todo torcedor se cadastrasse e passasse carregar esse cartão. Com isso acabaria com a falsificação de ingresso, o cambismo, controlaria o público no estádio… com identificação digital e facial.

Estadão – Isso não foi implementado por falta de vontade política…

PC – Aconteceu o seguinte: o ministro Aldo (Rebelo) assumiu, entendeu que não era questão do Estado bancar e cancelou o projeto.

Estadão – Foi por isso que, agora, o senhor não aceitou o convite (do ministro George Hilton) para ser Secretário Nacional do Futebol?

PC – Não. Foi porque quando ocorreram aqueles atos de violência entre Vasco e Atlético Paranaense (em Joinville, em 2013), teve uma movimentação em Brasília, eu fui lá numa reunião no Ministério do Esporte, representando o Procurador-Geral da República (Rodrigo Janot). Lá apresentei uma série de necessidades e nada foi feito. Percebi que quando ocorre uma tragédia, as pessoas se mobilizam, dão entrevistas, mas não sai do papel. Eu não gosto disso.

Estadão – Mas isso foi no governo passado…

PC – Daria para trabalhar na secretária em duas vertentes: a melhora do futebol e na defesa do direito do torcedor. Mas precisaria de respaldo, praticamente uma carta em branco. Não vi essa possibilidade.

Estadão – Como o senhor vê a atuação da polícia nos estádios. Há quem considere que também contribui para a violência…

PC – Acho que contribui sim para a violência, mas não dentro do estádio. Contribui quando falha na prevenção.

Estadão – Mas e na forma como o policial trata o torcedor?

PC – É possível, porque você não tem uma polícia especializada, e esse policial que vai trabalhar no entorno, no acesso ao estádio, é do batalhão de área, muitas vezes está de folga e é convocado. Às vezes não tem esse preparo. Nesse ponto ele deixa a desejar, mas não podemos generalizar. Nós temos ótimos policiais, mas temos os que falham.