O Ministério do Esporte e o Comitê Olímpico do Brasil (COB) dificultaram o controle de doping de atletas do País às vésperas da Olimpíada do Rio-2016 e “sufocaram” a operação de combate às irregularidades. As denúncias são feitas pelo médico português Luis Horta, então consultor internacional da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD). Ele deixou o País antes dos Jogos.
O que o senhor encontrou quando chegou ao Brasil?
Fiquei contente com a constatação das autoridades de que era preciso criar uma política de Estado contra a dopagem. O principal objetivo era o de criar um programa forte, independente e que não tivesse conflito de interesses para harmonizar o controle. O combate já existia no Brasil. Mas era muito desarticulado. Me agradou o investimento.
E o que ocorreu?
Nos dois primeiros anos, as coisas andaram bem. Tivemos ajuda da Casa Civil. Foi fundamental. As coisas pareciam caminhar. Criamos ferramenta para qualquer atleta saber se um medicamento tinha substâncias proibidas. Montamos um programa bem elaborado, prevendo controles em competições e fora de torneios, coleta de urina e sangue, o início do passaporte biológico. Criamos o regime jurídico contra a dopagem, algo fundamental. E considero que o Código Brasileiro Antidopagem foi um dos legados que deixei.
À medida que os Jogos se aproximavam, como foi o trabalho?
Alguns primeiros sinais de obstáculos aparecem antes da exoneração de Marco Aurélio Klein (ex-secretário nacional da ABCD, que o contratou). E aparecem após uma teleconferência com o COB, na qual o diretor executivo de Esportes, Marcus Vinícius Freire, dizia que não estava contente com a forma pela qual os testes fora de competição estavam ocorrendo. Ele dizia que estávamos fazendo controles demais e com falhas. E isso estava trazendo problemas na preparação dos atletas.
O que ocorreu depois?
Era o momento da transição e o começo do novo governo (de Michel Temer). Quando entrou o novo governo e o novo responsável pelo Esporte, começamos a sentir que estavam colocando entraves na operação.
De que forma?
Cada vez era mais difícil conseguir viagens para que os nossos oficiais de controle fizessem os testes. Tínhamos problemas para transportar o material. Sofríamos atrasos. Fazíamos um plano de controle para uma semana e não conseguíamos cumprir por conta dos entraves. Chegou a um ponto que o Ministério do Esporte passou a exigir que, com o pedido de viagem, fosse anexado o local, o dia e a hora dos testes e o nome dos atletas. Ora, isso já diria tudo.
E o que o senhor fez?
Eu disse ao Klein que existia uma clara estratégia para sufocar o trabalho e a ABCD. Foi o que aconteceu. Dias depois, ele foi exonerado. Klein jamais recebeu explicação sobre sua exoneração. Eu vi que, obviamente, fariam a mesma coisa comigo. Como eu já estava renovando meu contrato, decidi que voltaria para Portugal.
E o que ocorreu com o controle do doping no Rio-2016?
Uma força-tarefa havia sido criada para o Rio-2016, envolvendo COI, Wada, Rio-2016 e ABCD. Formamos 106 oficiais de controle e 23 de coleta de sangue. Nenhum desses 23 estava na lista do Rio-2016 (responsável por elaborar a lista das pessoas que trabalhariam no controle). Alguns deles chegaram a trabalhar para a CBF durante a Copa. Mas existiam outros dos quais não tínhamos conhecimento de quem eram.
De que forma isso afetou o controle do doping nos Jogos?
No lugar de usar os oficiais de coleta de sangue que a ABCD treinou, decidiram usar uma empresa privada. O que ocorreu, na prática, era que as coletas, em alguns momentos, não foram feitas. Assim, o Laboratório no Rio, com investimentos pesados do governo em tecnologia, não recebeu as amostras de sangue em quantidade suficiente. Parte do investimento não foi utilizado. Outro problema registrado foi com os “escoltas”, que são as pessoas que acompanham o atleta desde o momento em que ele é notificado para o controle até a coleta. Nós formamos quase uma centena deles. Esses líderes de escolta não foram usados pelos organizadores.
O senhor saiu da ABCD com sentimento de que o objetivo era ganhar medalhas a todo custo?
Parece que havia essa estratégia. Se um organismo, que tem importância enorme na realização dos Jogos e na preparação da missão de atletas, tem atitude dessas, sufocando nossas atividades, e as pessoas que entram não estão interessadas em resolver os problemas é, no mínimo, estranho. E nos leva a pensar que muito provavelmente havia essa estratégia.
Com tudo o que o senhor viu no Brasil, qual é a real dimensão do doping no esporte nacional?
É grave. Tivemos acesso às informações. Antes de chegar, já sabia que era difícil. Mas nunca pensei que fosse tão grave e que as estratégias de dopagem fossem tão sofisticadas. Tivemos acesso à informação de atletas que compravam produtos em borracharias, em farmácias, sem receituário.