Na noite de 31 de julho para 1.º de agosto de 1985, o futebol do Paraná ganhou respeito nacional. Quando o pênalti chutado por Gomes acomodou-se nas redes do goleiro Gilmar, do Bangu, o Coritiba assombrava o País ao conquistar o primeiro título brasileiro para o Estado. Muita coisa passou nesses 20 anos, que se completam domingo – o Coxa derrapou, andou pela Série B, viu o maior rival conquistar a mesma taça e experimentou uma fase de reestruturação, que permanece em andamento. Mas o sabor do feito pioneiro ainda adoça o paladar dos coritibanos que viveram aquele momento inesquecível.
A campanha alviverde de 1985 foi construída com base em três pilares: a astúcia de Evangelino Neves, maior dirigente da história do futebol paranaense; a firmeza e capacidade do experiente técnico Ênio Andrade; e a aplicação de um elenco sem estrelas, mas coeso e determinado.
Se a final foi contra o hoje modesto Bangu – o que sempre rendeu ironias por parte dos rivais, que tentavam minimizar a conquista -, no decorrer do campeonato o Coxa deixou para trás todos os grandes times do País. Na primeira fase do Brasileiro de 85, os 20 clubes mais bem colocados no ranking da CBF – incluindo o Coxa -ficaram nos grupos A e B. As chaves C e D somavam 22 times selecionados através dos Estaduais – ali estava o Pinheiros, então campeão paranaense.
Sem maiores expectativas, o Coxa começou o Brasileiro sob o comando de Dino Sani. A base era a mesma que ficou em 2.º lugar no Estadual do ano anterior. Alguns reforços prometiam -como o goleiro Rafael, que veio do rival Atlético, o lateral-esquerdo Dida e o volante Marildo, do Colorado. As demais novidades eram jogadores com certa experiência, mas sem grande fama, como os zagueiros Heraldo e Gomes e o volante Almir.
Dino Sani deixou o clube depois da quarta rodada, aceitando proposta do Qatar. O substituto era conhecido: o gaúcho Ênio Andrade, dono de dois títulos nacionais com Inter (1979) e Grêmio (1981). Mas o time demorou a engrenar e perdeu os três primeiros jogos com o novo treinador.
Aos poucos, o estilo simples e eficiente de Ênio começou a vingar. O veterano encaixou as peças e fez do Coxa um time competitivo e brigador. Tanto que a classificação foi obtida no minuto final da última partida da primeira fase, contra o Santos.
A segunda fase começou quase três meses depois, por causa da interrupção para disputa das eliminatórias da Copa de 86. Num grupo equilibrado, o Coxa passou por Joinville, Corinthians e Sport (PE) e chegou entre os quatro melhores.
Nas semifinais, contra o Atlético-MG, brilhou a estrela de ?São Rafael?. Depois de uma vitória por 1 a 0 no Couto Pereira, o goleiro, de saídas arrojadas e defesas milagrosas, garantiu o 0 x 0 no Mineirão.
A final seria realizada em jogo único na casa do Bangu, time que veio do grupo dos ?pequenos? e tinha melhor campanha. Mas a equipe carioca vivia sua época áurea, graças ao investimento do bicheiro Castor de Andrade. As torcidas dos grandes do Rio adotaram o time suburbano e lotaram o Maracanã. A confiança era tanta que um caminhão do Corpo de Bombeiros com faixa e tudo estava estacionado no lado de fora do estádio.
Os coxas, porém, não se intimidaram. Índio, de falta, abriu o placar para o Alviverde, mas logo depois o Bangu empatou com Lulinha. Empurrado pela massa, o time carioca foi mais perigoso no tempo normal e na prorrogação, mas o Coxa segurou o ímpeto e levou a decisão para a cobrança de pênaltis.
O Coritiba confiava na agilidade de Rafael, mas foi a má pontaria do ponta-esquerda Ado, que chutou para fora sua cobrança, que deu ao Alviverde a chance do título. O zagueiro Gomes bateu no cantinho e, com um soco no ar, deu início à comemoração da maior conquista da história alviverde.
A tacada de Ênio
Rio de Janeiro, noite de 30 de julho de 1985, véspera da final contra o Bangu. Ênio Andrade tira todos os jogadores da concentração e os leva à sede da extinta Rede Manchete, para que todos assistam ao jogo entre Bangu e Brasil de Pelotas, pela semifinal do Brasileiro. Ninguém gostou muito, mas o respeito ao treinador impediu qualquer manifestação contrária.
Dez minutos depois do início do teipe, todos se surpreendem com o pedido de Ênio para interromper a exibição. ?Não vamos perder tempo vendo este time ruim. Vocês vão ganhar deles fácil?, proclamou o treinador, enquanto mandava os operadores desligarem os equipamentos. ?Saímos com o ego lá em cima. Hoje sei que o Ênio fez aquilo de propósito, para nos dar confiança?, lembra o meia Tobi.
*Ênio Andrade, técnico campeão brasileiro pelo Coxa, morreu de câncer em janeiro de 1997, aos 68 anos.
Sem reconhecimento
Um título brasileiro dá ao jogador fama, fortuna e reconhecimento na profissão, certo? Não necessariamente. Se por um lado cravaram seus nomes na história do Coritiba, os campeões nacionais de 1985 trilharam caminhos modestos em suas carreiras depois daquele inesperado troféu. De todos os campeões, o único que passou pela seleção brasileira principal foi o lateral-esquerdo Dida. Ainda assim, a experiência foi curta e marcada pelo frustrante corte do grupo que foi à Copa de 1986. Os demais rodaram por clubes pequenos ou tiveram experiências sem brilho no eixo Rio-São Paulo.
Para citar os exemplos mais próximos, o Fluminense, campeão no ano anterior, tinha em seu elenco jogadores que já haviam ou ainda iriam vestir a camisa da seleção nacional, como o goleiro Paulo Vítor, o zagueiro Ricardo Gomes, o lateral Branco, o meia Assis e o atacante Washington, além do avante Romerito, astro da seleção paraguaia. Já o São Paulo, vencedor em 1986, tinha os selecionáveis Gilmar Rinaldi (goleiro), o uruguaio Darío Pereyra (zagueiro), Nelsinho (lateral-esquerdo), Silas (meia), Pita (meia), Müller (atacante) e Careca (atacante).
Para o ex-meia Tobi, a forte concorrência na seleção brasileira da época contribuiu para esta pequena expressividade. ?Eu, por exemplo, brigava com Zico, Sócrates, Cerezo, Silas…. Eram muitos craques. E o Coritiba não se destacava pela individualidade?, recorda. Além disso, na época, jogar no Exterior era privilégio para poucos. ?Hoje qualquer perna-de-pau vai para a Eupora e ganha 60 mil dólares por mês?, diz, bem-humorado. Após o título de 85, Tobi passou pelo Bangu, Vitória-BA, Juventus-SC, Iraty e Sinop-MT.
O volante Marildo lembra que e antiga Lei do Passe era outro empecilho – os clubes tinham total liberdade para definir o futuro de seus atletas. ?Depois do título de 1985 o Corinthians tentou me contratar, mas o Evangelino não liberou. Jogador não tinha empresário e quem não jogava no Rio ou em São Paulo não era valorizado?, lamenta o jogador, que depois do Coxa defendeu Inter de Limeira, América-SP, Guarani de Cruz Alta (RS) e Rio Branco de Paranaguá.
Os campeões brasileiros, porém, evitam muitas lamentações pela falta de oportunidades e enxergam o lado positivo. ?Muitos que jogaram antes de nós vivem hoje na miséria. Ao menos ganhamos o suficiente para hoje mantermos uma vida social digna?, disse Tobi.
Torcida alviverde vibrou como nunca
A final do Brasileirão agitou Curitiba como nunca. A caravana da torcida em direção ao Maracanã e a volta da delegação com o troféu transformaram a então pacata Curitiba num pandemônio.
Antes da final, a Rádio Cidade, uma das maiores da época, teve apoio financeiro de um candidato a deputado para organizar uma caravana ao Rio de Janeiro. Cerca de 60 ônibus foram disponibilizados para sorteios e promoções. O número de coxas-brancas que acompanharam de perto aquela decisão é incerto, mas gira em torno de 5 a 10 mil pessoas.
Talvez metade deste contingente partiu simultaneamente de Curitiba, numa gigantesca caravana que se concentrou na Avenida Nossa Senhora da Luz, Cristo Rei. Todos os vôos comerciais para o Rio de Janeiro estavam lotados e algumas empresas de transporte trouxeram ônibus extras de Santa Catarina para suprir a demanda. Carros, motos e Kombis também fizeram parte da procissão alviverde.
No Maracanã, embora animada e numerosa, a galera coxa-branca era abafada pelos quase 100 mil torcedores do Bangu de ocasião. Meses antes, a Mocidade Independente de Padre Miguel – escola controlada pelo presidente de hon-ra do Bangu – venceu o Carnaval, o que uniu ainda mais o público. O samba-enredo vencedor era cantado em uníssono pela massa. Mas o último cântico ouvido no Maracanã saiu das gargantas alviverdes.
A volta da delegação foi apoteótica. Os torcedores começaram a se aglomerar no Afonso Pena às 14h, três horas antes. O governador José Richa e o prefeito Maurício Fruet homenagearam o time, que desfilou num caminhão do Corpo de Bombeiros e foi saudado pela multidão que ocupou toda a Avenida dos Torres, Mariano Torres e Marechal Deodoro. Atrás, um trio elétrico providenciado pela Prefeitura revivia o gol de Índio e outros lances da decisão. Muitos compararam a agitação à da visita do papa João Paulo II, cinco anos antes.
A festa terminou no Couto Pereira, com distribuição de 2 mil litros de chope.
Imprensa também debutou numa final
A imprensa paranaense também se deslumbrou com o título de 1985. Dezenas de radialistas, repórteres de jornais e fotógrafos partiram ao Rio de Janeiro com jeito de convidados desajeitados para uma festa de gala. Mesmo os mais experientes não esconderam a emoção diante daquele evento inédito.
Já veterano, Vinícius Coelho, que à época era presidente da Associação Brasileira de Cronistas Esportivos (Abrace), se viu cercado de problemas. ?Tivemos dificuldades de acesso ao estádio e chegamos cinco minutos antes do jogo. E só comecei a narrar aos 35 do primeiro tempo?, lembra o jornalista, que transmitiu a decisão para a TV Paranaense.
Vinícius lembra que se impressionou com as bandeiras alvirrubras espalhadas pela rica Zona Sul do Rio, evidenciando o apoio que o Bangu conquistou das demais torcidas. ?Ouvimos algumas gozações de torcedores que achavam o jogo uma barbada?, ri o jornalista.
Carneiro Neto, então narrador da Rádio Independência, viu colegas deslumbrados em vivenciar a final histórica. ?O Munir Calluf, que era comentarista, não se cabia em si. Na verdade, estávamos todos emocionados?, recorda. Tudo compreensível frente ao ineditismo que representava uma final como aquela. ?Éramos meio amadores nesse aspecto. Hoje, até pelos feitos do Atlético, estamos mais experimentados. A final da Libertadores, por exemplo, gerou comoção menor?, compara.
Para Carneiro, uma coisa não mudou: o desinteresse da grande mídia nacional pelos paranaenses. O impacto da conquista do Coritiba foi equivalente ao do título do Atlético em 2001: quase nenhum. ?Como em 2001, mostraram a conquista, a festa e logo voltaram a falar da pré-temporada do ?Curíntia??, ironiza.