Em meio a escândalos de corrupção, João Havelange completa 100 anos de idade

Em 2009, na última apresentação da delegação do Rio de Janeiro para conquistar o apoio do COI para sediar os Jogos de 2016, a palavra final foi dada a um brasileiro conhecido de todos no mundo dos esportes: João Havelange. Ao se levantar, sua estatura impressionante e seu histórico motivaram profundo silêncio na sala de convenções em Copenhague, na Dinamarca.

“Em 1952, participei dos Jogos ao lado de nomes importantes como Jesse Owens. Vi que essa competição é capaz de mudar um país e a vida de muitas pessoas”, disse em francês o então presidente de honra da Fifa. “Convido todos vocês a virem para a minha cidade prestigiar os Jogos no meu centésimo aniversário. Peço que se juntem a mim para realizar esse sonho”.

Sete anos depois, os dois sonhos de Havelange se concretizaram: os Jogos ocorrerão no Rio e, neste domingo, ele chega aos 100 anos de idade. No entanto, para tristeza suprema de alguém que marcou sua trajetória centenária pelo apego ao poder, Havelange amarga o ostracismo. Nos últimos anos, só é lembrado quando alguma crise na sua várias vezes propalada “saúde de ferro” o leva a um hospital ou quando seu nome é citado em algum dos muitos escândalos envolvendo cartolas ligados ao futebol.

Reverenciado por décadas, figura próxima de presidentes, príncipes, xeques e por ditadores com os quais manteve relacionamento, Havelange perdeu muita coisa nos últimos anos. Seu cargo de presidente de honra da Fifa foi retirado por conta do escândalo de corrupção, foi obrigado a abandonar o COI e a Justiça dos Estados Unidos reabriu as investigações sobre seu reinado no comando da Fifa.

Amigos se afastaram. Outros, como Joseph Blatter, que o substituiu na Fifa em 1998, permanecem fiéis. Mas nem tanto: o suíço decidiu não ir ao Rio para a festa do centenário do amigo por temer ser preso. O atual presidente, Gianni Infantino, também não virá. Caberá ao veterano embaixador da entidade, Walter Gagg, dar a mensagem da entidade no evento.

ASCENSÃO – Nascido em 8 de maio de 1916 no Rio, o filho de belgas Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange se destacou na natação e no polo aquático no Fluminense. Competiu nos Jogos de 1936, em Berlim, quando se admirou da capacidade de organização de Adolf Hitler. Também foi aos Jogos de 1952. Em 1956, já comandava a delegação brasileira.

Naquele mesmo ano, passou a presidir a CBD. Chegou dizendo que ficaria apenas um mandato (três anos), mas só saiu em 1974, para dar um salto maior: presidir a Fifa. No comando do futebol brasileiro, Havelange levaria a seleção às conquistas de 1958, 1962 e 1970. Intimamente relacionado com o regime militar brasileiro, Havelange permitiu que os generais usassem a seleção como instrumento de propaganda, dentro e fora do País.

João Havelange chegou à Fifa com a ajuda da Adidas, que buscava contratos no futebol. Desbancou o poder europeu, mas assumiu uma entidade perto da falência: 13 funcionários e um caixa vazio – “tinha 20 dólares no caixa”, disse certa vez. O brasileiro, porém, transformaria a Fifa em entidade bilionária usando sua influência para colocar o futebol como um dos maiores produtos comerciais do planeta.

Para se manter no poder por 24 anos, Havelange montou uma estratégia que se mostrou imbatível. Globalizou o futebol, dando espaço, e dinheiro, para países da África e Ásia e ampliou vagas em Mundiais. Também aproveitou uma nova oportunidade de negócios que surgia, as transmissões de jogos, para vender os direitos para a Copa do Mundo para as grandes emissoras do mundo.

Assim, Havelange garantiu uma explosão de recursos, de membros, com praticamente todos eles como seus aliados. Ao final dos anos 90, o COI reconheceria essa trajetória e o escolheria como um dos três maiores “dirigentes do século”.

Quando Havelange deixou o poder na Fifa em 1998 e ainda elegeu Joseph Blatter como seu sucessor, acreditou que seu legado estava garantido, assim como sua imunidade. Não foi assim. Revelações feitas pela imprensa britânica apontaram em 2011 que, nos anos 90, ele recebeu milhões de dólares em propinas da empresa de marketing ISL em troca de contratos de transmissão da Copa. Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF e seu ex-genro, também ficou com parte do dinheiro. No total, a ISL teria distribuído mais de US$ 100 milhões em propinas.

Um acordo foi fechado na Justiça suíça em que, sem admitir culpa, Havelange e Teixeira pagaram uma multa e o caso foi encerrado. Por anos, os documentos foram mantidos em sigilo. Mas a publicação dos dados fez o COI abrir investigações e levou o brasileiro a renunciar a seu cargo na entidade, “por motivos de saúde”.

Fora do COI, o brasileiro conseguiria evitar ser punido e o processo foi arquivado. Mas sua história não havia terminado. Em 2012, depois de longa batalha jurídica, os documentos do processo suíço foram publicados e, neles, ficava provado que Havelange havia “fraudado” a Fifa. Em 2013, ele renunciou ao cargo de presidente de honra da organização que transformou. Uma vez mais, conseguiu evitar uma condenação.

Ele acreditou novamente que a história estava encerrada. Até que, de forma inesperada, o FBI decidiu mergulhar no esquema de corrupção da Fifa. Em dezembro de 2015, Havelange entrou no radar do FBI. Em uma carta rogatória aos suíços, os norte-americanos solicitaram acesso a todo o processo das propinas da ISL.

E assim, alvo de investigação, Havelange chega aos 100 anos. Longe dos holofotes. Nos últimos meses, se limita a saídas eventuais do apartamento em que vive em Ipanema, na zona sul do Rio, acompanhado por uma cuidadora. E uma vez por semana almoça com a família no Country Club, no mesmo bairro. Do poder, só lhe restam lembranças.

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