Personal trainer, campo de futebol em casa, churrasqueira ao lado da piscina, milhões na conta e lives com estrelas da música e outras celebridades. Esta é a realidade de um grupo extremamente seleto de jogadores de futebol no Brasil durante a paralisação dos jogos pela pandemia de coronavírus.
O restante, a imensa maioria de operários da bola, convive com a incerteza quanto ao futuro próximo, muitas vezes sem saber se terão dinheiro no mês seguinte para arcar com necessidades básicas. Segundo levantamento da CBF de 2016, 82,4% dos jogadores profissionais do país ganham até um salário mínimo.
Realidade comum entre os jogadores do interior do estado do Paraná. Com o Estadual paralisado e sem previsão exata de retomada, os atletas dos clubes paranaenses se viram para manter a forma física, alimentação balanceada, equilíbrio financeiro e a própria saúde mental em um cenário repleto de incertezas.
“A gente tem que se apegar à fé”
Com passagens pelas categorias de base de Athletico, Coritiba e Paraná, o lateral-direito Lito, 27 anos, vinha disputando o Paranaense pelo Rio Branco. O clube de Paranaguá foi um dos primeiros a entrar em colapso financeiro com a interrupção do campeonato.
Sétimo colocado na primeira fase da disputa, o Leão da Estradinha demitiu comissão técnica e tem a maioria do elenco com contrato terminando no final de abril. “Todo mundo acha que futebol é Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar. E não é”, comenta Lito.
Após ser liberado pelo Rio Branco, o atleta mantém a forma diariamente em uma praça no bairro Santa Quitéria, em Curitiba. “Eu faço treino por conta própria. Tenho amigos preparadores físicos que me passam treinos, mas treino sozinho, na pracinha a vinte metros de casa”, conta.
O jogador conta que, desde o início da carreira, procurou organizar as finanças de modo que agora tenha uma reserva financeira para o período sem salários e jogos. Caso o Paranaense retorne, Lito pode fazer um novo contrato com o Rio Branco por mais três meses.
“Mas tem questão de salário que falta ser pago, teria que prorrogar o contrato, é uma questão de se pensar”, ressalva o jogador, que se comunica com outros colegas jogadores por grupos de Whatsapp.
“A gente sabe que, assim como o Rio Branco, muitos clubes brasileiros não têm estrutura para aguentar essa pandemia. Neste momento, cada jogador está se virando como pode, está difícil para todo mundo. A gente tem que se apegar à fé”, completa.
“O cansaço é mental”
O goleiro Gabriel, 25 anos, se transferiu do Cascavel CR para o Atlético Cajazeiras, da Paraíba, ainda durante o Paranaense deste ano. Diante da paralisação das competições, a transferência foi crucial para o jogador nascido em Guaianazes, zona leste de São Paulo.
Ele tinha contrato com o clube do interior paranaense até abril. No time nordestino, o vínculo vai até novembro, por causa da disputa da Série D.
“Em clube pequeno a gente sobrevive com salário mínimo. A maioria dos jogadores vem de família pobre, humilde, pagando aluguel, como eu. É muito difícil. Tenho amigos desempregados. Ainda não passam necessidades. Mas em dois, três meses, não sabem o que pode acontecer”, explica o jogador, que reside em Assis Chateaubriand, perto de Toledo.
O Atlético Cajazeiras tem utilizado o auxílio financeiro da CBF, equivalente a duas folhas salariais de cada clube, para manter os salários em dia. Enquanto isso, Gabriel treina duas vezes por dia, às 9h e às 17h, mesmos horários em que treinava no clube.
“Eles fizeram vídeo aulas para a gente cuidar da parte física. A parte técnica, sendo goleiro, a gente acaba perdendo um pouco. Mas alimentação e condicionamento físico a gente segue à risca. Não estamos de férias”, ressalta o jogador, que treina sozinho na própria residência.
Enquanto se esforça para manter a forma física e a saúde mental, Gabriel alimenta sonhos para a sequência da carreira. “O meu sonho hoje não é apenas estar em um grande clube. É poder entrar com um filho ou filha minha em campo”, relata.
O jogador é casado com a fotógrafa e assessora de imprensa, Gabriela Letícia Sávio, que trabalhou com ele no Cascavel e agora está na assessoria do Atlético-PB.
“Ano passado passei pela dificuldade de perder uma filha e todas as vezes que entrava em campo com uma criança, lembrava dela. Então, meu sonho não é estar num grande clube, mas sim que Deus me permita entrar em campo com um filho e que eu possa ajudar a minha comunidade com projetos sociais”, prossegue.
Gabriel conta que espera seguir sendo um exemplo para os jovens da comunidade de Guaianazes.
“A região revela muito jogador de futebol, não tem muita opção, mas muitos não têm equilíbrio mental. Eu nunca fui o melhor. Tinha amigos muito melhores. Mas eu era um dos mais perseverantes. Muitos estão hoje lá largados”, completa.
“Venho de família humilde e a vida é assim: o importante é sobreviver e não passar fome”
Filho de pais agricultores, o volante Sananduva, 24 anos, aprendeu desde cedo a importância de economizar parte do dinheiro que recebe.
“A gente aprendeu desde criança, não precisa ser pão-duro, mas tentar guardar o máximo possível. Então, agora, não que tenha muito dinheiro, mas consigo não passar fome”, conta. “A vida é assim, você tem que pensar no que pode acontecer. O importante é viver e não passar fome. Tenho amigos não tiveram esta educação financeira e sofrem agora”, prossegue.
Antes de chegar ao FC Cascavel em 2020, o volante defendeu Juventude, Grêmio e o time de aspirantes do Athletico, em 2018. Ele tem contrato com o FC Cascavel até o final da Série D e está emprestado pelo Juventude. Mas quem vem pagando seus salários é o clube paranaense.
“Ainda está tudo ok em termos de salários, a gente espera que o clube consiga manter, é difícil, mas todo mundo precisa”, explica, enquanto passa a quarentena em Caxias do Sul, na casa da namorada.
Os treinos diários para manter a forma física são acompanhados pelo cunhado, formado em Educação Física. “Procuro me exercitar todos os dias, para estar preparado. Comprei pesos para fazer em casa e também aproveito lugares ao ar livre com poucas pessoas”, relata.
jogador conta que muitos colegas de profissão estão desempregados e sem renda por causa da pandemia. “Eu acredito que 90% dos jogadores dependam do salário do mês para comprar comida, pagar escola, sustentar filhos, tudo”, diz.
“Aqui perto, o Novo Hamburgo demitiu todo mundo, jogadores, funcionários. Tenho até um amigo que estava jogando lá. É complicado. Eu recebi este mês, mas mês que vem a gente já não sabe. É rezar para voltar logo”, prossegue.
Após surgir como promessa do Juventude, Sananduva ainda busca um salto maior na carreira. Enquanto isso, relembra com carinho o período em que defendeu os aspirantes do Athletico.
“Aprendi muitas coisas com o Tiago Nunes, o clube é muito bem estruturado, padrão para todos no Brasil, na minha opinião”, relembra. “É um clube muito evoluído. Aprendi muita coisa lá que espero colocar em prática na carreira”, completa.
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