O Estatuto do Torcedor está em prova, finalmente. O Coritiba começou ontem a agir para que o Vasco da Gama, seus diretores e os torcedores paguem pela selvageria de quinta-feira, quando a delegação alviverde foi agredida e assaltada dentro do estacionamento do estádio de São Januário. Pela primeira vez o polêmico artigo 19 do Estatuto será usado, e justamente num ato envolvendo um de seus maiores opositores, o presidente do Vasco Eurico Miranda. E, se depender do Cori, a história não vai acabar em pizza.
A delegação coxa chegou ontem a Curitiba ainda com os estilhaços do mais grave ato de torcidas organizadas na história recente do campeonato brasileiro – membros da facção Força Jovem do Vasco invadiram o ônibus alviverde e agrediram jogadores, comissão técnica e dirigentes. “Não há justificativa, não há atenuante, não há explicação”, resume o secretário Domingos Moro. “Não podemos deixar isso passar. Temos que fazer alguma coisa, os canais competentes precisam fazer alguma coisa”, completa o presidente Giovani Gionédis.
As primeiras ações do Cori aconteceram na madrugada, após o jogo. A delegação seguiu para o 17.º Distrito Policial, que é próximo de São Januário, para prestar queixas. Depois, Gionédis seguiu com cinco jogadores (Lira, Souza, Leandro, Jackson e Gélson) para o Instituto Médico Legal realizar exames de corpo de delito. “No lado criminal, fizemos o que podia ser feito. Agora temos que esperar o encaminhamento do processo”, explica Moro.
No lado cível, o clube e os agredidos pedirão ressarcimento do Vasco. “Nós vamos usar o Estatuto do Torcedor para buscar nossos direitos”, afirma o secretário. No artigo 19, o Estatuto prevê que “as entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente (…) independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos que decorram de falhas de segurança nos estádios”.
Nesse artigo, fica explicitado que o culpado pelo fato, mesmo que nem estivesse lá, é o presidente do Vasco Eurico Miranda. Por sinal, ele realmente não estava em São Januário, assim como nenhum de seus assessores diretos. Mas uma pessoa, que se identificou como auxiliar do presidente (seria Ricardo Vasconcellos, assessor da presidência), chegou a conversar com os diretores do Coxa. “Ele pediu que nós não falássemos nada, porque isso poderia prejudicar o momento político do clube”, conta Moro.
Mas a principal ofensiva do Coritiba vai acontecer na instância esportiva. Mesmo que não haja possibilidade visível de sucesso, a direção poderá pedir os pontos da partida no STJD. “Nós temos que tomar medidas drásticas. Essa tragédia não pode ficar impune”, diz Domingos Moro. Segundo Gionédis, os advogados do clube estão estudando essa hipótese. “Se houver possibilidade legal, podemos fazer alguma coisa. Mas o que mais interessa é a integridade física dos atletas”, comenta.
Além disso, será pedida punição exemplar para o Vasco, o afastamento de Eurico Miranda e no mínimo a interdição de São Januário. “Nós vamos enviar as provas para todos os canais competentes, incluindo o Ministério Público e o Ministério do Esporte. O Eurico que me desculpe, mas vou levar isso às últimas conseqüências”, afirma o presidente coxa.
Para atingir isso, o Coxa levará tudo que for possível. “Vamos levar os processos criminais, as imagens da TV, as reportagens dos jornais e as pessoas que acompanharam essa barbárie. Provas não vão faltar”, garante o secretário alviverde. “Nem precisaríamos denunciar, mas mesmo assim vamos fazer isso. Não acredito que o futebol brasileiro aceite passivamente esse fato lamentável”, diz Giovani Gionédis. “Da mesma forma que fomos a uma delegacia, poderíamos ter ido a um necrotério. Isso não tem explicação, e nem desculpa”, finaliza Moro.
Torcida assume e acusa. Ministro recebe Gionédis
A posição da diretoria do Vasco da Gama não convenceu o Coritiba. A alegação de não ter culpa na história, e a posição de colocar parte da responsabilidade em Jackson – que teria agitado uma camisa do Flamengo – irritou os dirigentes alviverdes, que esperam a ação rápida do STJD. A facção organizada Força Jovem assumiu a responsabilidade pelo ocorrido.
Em nota oficial, a torcida diz querer “contar a verdade”, afirmando que “alguns jogadores coritibanos provocaram os torcedores de forma desrespeitosa, inclusive chamando-os para a briga. (…) Como as leis da física apregoam, toda ação acarreta em uma reação. E foi isso que aconteceu. (…) Ninguém pode ser desrespeitado em sua própria casa, e quando o é, não pode ser obrigado a ficar calado”.
Para a diretoria vascaína, também em nota oficial, a responsabilidade é de Jackson. “Após a partida, o jogador Jackson provocou torcedores do Vasco. O policiamento já havia se retirado do estádio e não havia escolta. Nesse momento, o jogador agitou uma camisa do Flamengo, o que fez com que os torcedores invadissem o local reservado e também o ônibus.” “Isso não existe. Quero ver eles provarem”, reage Jackson. “Não há malucos no clube para fazer uma coisa dessas”, atirou Domingos Moro.
Mesmo assim, a direção do clube carioca “hipoteca solidariedade” na nota, e o presidente Eurico Miranda enviou fax ao Coritiba pedindo desculpas pelo ocorrido. “Não é para desculpas. É um caso muito grave, é uma situação que não pode ser explicada. Só quem viveu, que ficou até as cinco da manhã no Instituto Médico-Legal, pode dizer”, responde o presidente Giovani Gionédis.
A esperança coxa reside em Luiz Zveiter, que promete ações firmes e rápidas para punir os responsáveis.
Ministro
Em Cuba, o ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz, repudiou os acontecimentos de São Januário. Em resposta ao ofício encaminhado pela Paraná Esporte relatando e cobrando providências sobre o episódio ocorrido na noite de quinta, Queiroz se mostrou indignado com o ocorrido. “Como defensor do Estatuto do Torcedor, o ministro ficou muito triste e vai receber a mim a ao presidente Giovani Gionédis na segunda-feira em Brasília”, disse o presidente da autarquia, Ricardo Gomyde.
Selvageria mostra falta de segurança em São Januário
A cronologia da pancadaria de São Januário começa antes da confusão em si. Na gênese da história estão provocações, ameaças respondidas e principalmente o despreparo da estrutura do Vasco para atender os visitantes e evitar confusões. Em uma partida com pouco mais de mil torcedores, a segurança permitiu a entrada no campo de pessoas que não estavam envolvidas com o jogo, e foi daí que começou a selvageria.
Logo após o final da partida contra o Vasco, os jogadores do Coritiba deixavam o gramado quando um jovem, sem qualquer identificação, começou a xingar o meia Jackson. O jogador retrucou, e o torcedor partiu para cima, respaldado por mais pessoas. Antes que eles chegassem em Jackson, os alviverdes e a polícia intervieram e a confusão acabou. Mesmo assim, o jogador coxa e o torcedor continuaram trocando impropérios, e o rapaz (que vestia calça jeans e camisa amarela) ?jurou? Jackson, dizendo que ele “ia ver lá fora”.
Quando muitos já contavam a história como passada, membros da facção organizada Força Jovem entraram no estacionamento de São Januário. “É um lugar cercado, pretensamente seguro”, diz o secretário Domingos Moro. Cinco jogadores já estavam dentro do ônibus (Leandro, Souza, Lima, Jackson e Lima), e quando Gélson se encaminhou para entrar, os agressores chegaram. “Quando a porta abriu, eles invadiram e partiram para cima”, conta Leandro.
Gélson foi o primeiro a sofrer. Ele foi retirado aos pontapés do ônibus, e teve a corrente arrancada, provocando um hematoma grande no pescoço. “A gente ficou cercado pelos caras, não tínhamos para onde correr”, conta o centroavante. Jackson, nesse momento, era agredido por dez torcedores. “Tomei socos e chutes, mas tenho que agradecer que não tive nada mais sério”, conta o meia, que está com arranhões nas costas.
Um conhecido do técnico Paulo Bonamigo correu até o vestiário para avisá-lo. “Ele disse que tinha gente armada, e que ninguém saísse do vestiário”, conta o treinador. Gélson e outros jogadores se refugiaram no gramado, sem iluminação, enquanto outros ainda brigavam. “Eu vi o Danilo entrando na confusão e resolvi correr atrás de ajuda. Fiquei com medo que alguém morresse”, diz Roberto Brum. Quando saiu, o presidente Giovani Gionédis tentava serenar a fúria dos torcedores, mas acabou apanhando também. “Estou com hematomas no nariz, no braço e nas costas”, conta.
Conhecendo o bairro, o “Senador” foi – a pé – até o 17.º Distrito Policial. “Tive que convencer os policiais que era uma coisa séria”, lembra. Quem percebera que a coisa era grave entrava na história. “O Edmundo veio para tentar acalmar os torcedores. Foi uma atitude bem legal dele”, elogia Leandro. Uma pessoa, que seria um segurança particular, disparou tiros para o alto, aumentando o pânico. “Foram 25 minutos de caos absoluto”, garante Domingos Moro.
Apenas com a chegada da Polícia Militar os ânimos se acalmaram. Até esse momento, o clima era de faroeste, já que a polícia especializada em segurança nos estádios (GEPE) saiu logo depois do final do jogo. “Não havia ninguém”, diz Domingos Moro. E as marcas dessa impunidade estavam no corpo e na alma dos coxas. “Foi um milagre que nada de mais grave tenha acontecido”, diz Gionédis. “Acho que se a gente ganhasse o jogo, íamos morrer”, finaliza Jackson.
Revolta
Talvez Odvan não soubesse o que acontecia com os visitantes em São Januário. Ao presenciar o drama dos companheiros, o zagueiro coxa disse que não pretende mais ir ao estádio ou voltar a jogar no Vasco. “Fiquei envergonhado e entristecido. Nunca imaginei que isso fosse acontecer. Não quero mais saber do Vasco”, confessa.