Numa das regiões de maior concentração de movimentos islâmicos radicais do mundo, o Cáucaso russo, o futebol tem ajudado a salvar um pequeno número de meninos que antes seria presa fácil de recrutadores de grupos como o Estado Islâmico.
Na ponta dessa ação está um empresário, Mikhail Ubaidulaiev. De voz ponderada, cabelos e barba mais grisalhos do que seus 48 anos sugeririam, ele tem investimentos imobiliários, restaurantes e hotéis em Moscou e Lisboa.
Só altera o tom de voz quando fala sobre a sua Khasiavurt natal. “Eu precisava fazer algo para evitar que as crianças pobres de lá pegassem em armas por ordens de gente pervertida”, afirmou.
A cidade fica no Daguestão, na fronteira com a Tchetchênia, centro de atividade terrorista e separatista desde o fim da União Soviética, em 1991.
Foi lá que a Rússia assinou um humilhante tratado que pôs fim à primeira guerra da Tchetchênia, em 1996, só para voltar, finalizar o serviço em 1999 e retomar o controle da região com a ajuda de autocratas como o presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov.
Em 2006, com a situação mais normalizada, Ubaidulaiev foi procurado por uma amiga do colégio número um de Khasiavurt, Valentina Antoniuk, então diretora da escola.
Ela falou sobre a dificuldade de manter os alunos na sala de aula, e que sem isso era mais fácil para grupos militantes que agem na região recrutar meninos para o terror.
Da conversa nasceu, naquele mesmo ano, o Pobeda (Vitória, em russo), a escolinha e time de futebol anexos ao colégio. “Gastei dinheiro, e gastaria de novo”, conta Ubaidulaiev à mesa de um de seus restaurantes, o bistrô francês Café Michel, em Moscou.
O investimento foi enorme para os padrões locais: US$ 1,5 milhão (R$ 5,5 milhões no câmbio de hoje, fora a inflação), pagos pelo empresário e alguns amigos. Foi levantado um pequeno estádio para 750 pessoas e centro de treinamento.
A prefeitura local cedeu o terreno. Hoje, são 250 garotos cursando em tempo integral a escola de futebol pela manhã e a regular, no prédio ao lado, à tarde. A manutenção sai do bolso de Ubaidulaiev, na casa de US$ 100 mil (R$ 368 mil) ao ano.
“O futebol salvou minha família”, disse, por telefone e com a ajuda de uma vizinha que fala inglês, Irina Radaieva, 44. Ela é mãe de Hajiev, 13, que treina há dois anos.
O irmão do garoto, Umar, fugiu de casa aos 17, em 2015, ao atender o chamado feito pela internet de um grupo que se diz associado ao Estado Islâmico.
Irina acha que o filho morreu combatendo na Síria. “Já o Hajiev só fala de futebol, da Copa do Mundo”, diz.
A empreitada enfrentou algumas questões culturais. O Daguestão é o berço de vários campeões olímpicos dos tempos soviéticos de luta greco-romana e, assim como a Tchetchênia, ginásios do esporte se espalham pelo país.
Por que não investir nisso? “Porque gosto de futebol e é um esporte que inspira o trabalho coletivo, em equipe”, diz o empresário.
E ele é fã do futebol brasileiro, o qual acha favorito para ganhar a Copa. Tanto é assim que as cores do Pobeda são o verde e o amarelo, no uniforme e no prédio principal do centro de treinamento.
O sucesso relativo, já que a população do Daguestão é de 3 milhões de pessoas, fez Ubaidulaiev expandir a iniciativa. Em 2012, ele virou diretor-adjunto do clube Anji, da capital Makhatchkala, e iniciou um programa ainda incipiente de centros de treinamento pelo país.
“A experiência na Alemanha e na Holanda mostra que é preciso ter centros a 40 km da residência dos alunos, no máximo, e oferecer estadia integral”, diz ele, que cita estatística segundo a qual apenas 1,5% dos compatriotas joga futebol com alguma frequência.
O Anji foi um dos últimos da carreira do ex-lateral esquerdo da seleção Roberto Carlos, que também o treinou interinamente em 2012. Uma foto dele entre Ubaidulaiev e um amigo está em um pôster no CT do Pobeda.
A Copa é uma esperança para essa popularização num país fanático por hóquei no gelo. A presença do Egito em Grozni, capital da Tchetchênia que fica a 80 km de Khasiavurt, dá uma amostra pequena desse potencial.
Na tarde desta segunda (11), era possível contar cinco grupos de crianças jogando bola na região periférica em que foi montado o complexo de luxo para abrigar Mohamed Salah, atacante do Liverpool e astro da seleção, e seus colegas.
Dois eram de meninas, que segundo uma parente mais velha traduziu, disseram querer aprender o esporte.
Num outro grupo, Ramzan, 9, afirmou que preferia jogos de futebol à guerra que seus pais viveram. E, posando à frente do hotel em que o Egito está, o dono da bola usada em outra pelada fez juras à profissão. “Serei jogador”, disse Iuri, 13.