Conflito entre leis deixa a profissão de treinador sem regulamentação

Todo torcedor que se preze já deu uma de técnico de futebol: pediu o lançamento daquele reserva pouco aproveitado, exigiu a mudança do esquema tático ou reclamou da ?burrice? do comandante pela alteração mal-sucedida. O que o teórico de arquibancada não sabe é que, se for convidado, pode exercer sem constrangimentos legais a função de treinador. Graças a um conflito entre leis federais, não há regulamentação clara sobre a profissão – treinadores da nova geração, como Gallo, Vágner Mancini, Péricles Chamusca e outros trabalham irregularmente sob um dos aspectos da legislação, mas protegidos por outro.

Soa confuso? Até os especialistas concordam.

A primeira lei que tratou da profissão de técnico foi a 8.560, sancionada por Itamar Franco em 1993. Ela determina que o exercício da profissão de treinador de futebol é assegurado preferencialmente aos portadores de diploma de Educação Física, ou a quem já exercia a atividade antes da vigência da lei. ?O termo preferencialmente permite que qualquer pessoa exerça a profissão. E a lei continua em vigor?, observa José Antônio Nogueira Júnior, diretor do Sindicato dos Treinadores Profissionais de Futebol do Estado de São Paulo (Sintrepfesp) – uma das três entidades de classe estaduais no Brasil (as outras são no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul).

Em 1998, Fernando Henrique Cardoso assinou a Lei 9.696, que criou o Conselho Federal e os Conselhos Estaduais de Educação Física. A nova legislação estabeleceu que os treinamentos especializados nas áreas de atividade física e do desporto (onde se enquadra a prática de treinador de futebol) competem apenas aos profissionais de Educação Física. E só tem direito a esse título quem passar pelo banco da faculdade, ou quem já exercia tais atividades antes da vigência da lei.

Por outro lado, o diploma de terceiro grau dá ao aluno somente conhecimentos gerais sobre a área de Educação Física, e não o capacita a tornar-se técnico de futebol. Só existem duas especializações voltadas ao esporte bretão -uma da Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e outra da Faculdade de Educação Física de Santo André (Fefisa).

?O conhecimento científico do formado tem seu valor. Mas a vivência como jogador,

a experiência com dezenas de técnicos no dia-a-dia da atividade não tem preço?, afirma Caio Júnior, ex-treinador de Paraná, Cianorte e Gama, que não tem o diploma de Educação Física.

?A faculdade não ensina tática, história do futebol, não forma como treinador. Mas o profissional também deve ter noções de anatomia, pedagogia… É difícil falar quem tem razão?, diz Nogueira Júnior, formado em Educação Física e com especialização em futebol.

O que defendem muitos técnicos e dirigentes sindicais é a criação de um curso especial para que um ex-jogador não seja obrigado a concluir uma faculdade para exercer a profissão. ?O atleta não consegue conciliar carreira e estudo, e quando pendura as chuteiras não tem mais tempo ou condição financeira para quatro anos de faculdade.

O ideal seria permissão para iniciar nas categorias de base, e depois de um certo tempo ascender ao profissional?, sugere Caio Júnior.

Curso profissionalizante só fora

Paranaenses candidatos a treinador de futebol têm que sair do Estado para aprimorar seus conhecimentos. Só há cursos específicos para a profissão no eixo Rio-São Paulo e no Rio Grande do Sul. E embora as aulas sejam meramente de aperfeiçoamento, alguns dos organizadores ?vendem? seu peixe alegando que o diploma é uma obrigatoriedade para o exercício da profissão.

É o caso, por exemplo, do curso de formação da Associação Brasileira de Técnicos de Futebol (ABTF), promovido duas vezes por ano na Escola do Exército no Rio de Janeiro. De fato, o curso é o mais reconhecido do Brasil e normalmente conta com profissionais de renome como Carlos Alberto Parreira, Zagallo, Paulo Emílio, Antônio Lopes e outras figurinhas carimbadas. Mas o presidente da ABTF, Orlando Peçanha – ex-zagueiro do Vasco, Santos e Boca Juniors, e campeão mundial com a seleção brasileira de 1958 – superdimensiona a importância das aulas. ?Quem vai para o exterior e não apresenta nosso diploma é mandado de volta. Aliás, nem no Brasil pode trabalhar?, afirma. Mas não há qualquer lei que vincule a profissão de treinador à conclusão destes cursos. ?O curso da ABTF talvez ensine mais sobre futebol que as universidades, mas como todos os demais não tem nenhum valor legal?, afirma José Antônio Nogueira Júnior, diretor do Sindicato dos Treinadores Profissionais do Estado de São Paulo (Sitrepfesp), entidade que também organiza um simpósio anual – o de 2005 aconteceu em maio.

O curso promovido pelo Sindicato dos Treinadores Profissionais do Rio Grande do Sul (STPE) – que começa na próxima segunda-feira – também é vendido como ?profissionalizante?. Segundo o presidente da associação, Vilmar Salaberry, ex-treinador de equipes de base no Rio Grande do Sul e ex-supervisor de clubes comandados pelo controvertido empresário paranaense Aurélio Almeida (Império do Futebol), este tipo de curso é a única alternativa à faculdade de Educação Física para exercício legal da profissão de treinador. Nas edições anteriores, o Sindicato dos Treinadores Profissionais do Rio Grande do Sul (STPE-RS) contratou técnicos conhecidos como ?chamarizes? – casos de Luiz Felipe Scolari, Flávio Murtosa, Ivo Wortmann e Cassiá. Os dois últimos foram chamados para a 6.ª edição do curso, na condição de convidados. ?Todos os que passaram por aqui fazem questão de voltar, reconhecendo a importância do curso?, afirma o presidente da STPE, Vilmar Salaberry, antigo meia-esquerda de times do interior gaúcho nos anos 50s e 60s e treinador de categorias de base.

O corpo docente inclui o preparador físico da seleção, Paulo Paixão, o árbitro Leonardo Gaciba, além de professores universitários, treinadores de goleiros e outros. Vários ex-atletas de futebol já ganharam o diploma da STPE, como João Antônio, ex-Paraná, Arílson e Dinho, ambos com passagem pelo Grêmio.

Na Europa, a lei é muito rigorosa

Na Europa, as leis que regulamentam a profissão de treinador são mais claras que no Brasil. O rigor pode até impedir a contratação de Ricardo Gomes, ex-Coritiba e seleção brasileira sub-23, pelo Bordeaux, da França.

O sindicato francês de treinadores de futebol (Unecatef) alega que Gomes não tem os títulos necessários para exercer a função.

O vice-presidente do sindicato, Pierre Repellini, disse ao jornal L?Equipe que considera a nomeação de Ricardo Gomes um ?ultraje?. ?Se Ricardo Gomes se apresentar em campo o levaremos à Justiça, assim como o presidente que o contratou, por exercício ilegal da profissão?, ameaçou o sindicalista.

Segundo o Unecatef, o Código de Educação obriga o treinador a apresentar um diploma local.

Na temporada passada, o técnico suíço Roberto Morinini teve que deixar o Angers, da Segunda Divisão, por não possuir títulos reconhecidos na França. ?O caso de Ricardo é ainda mais grave porque ele chega de mãos vazias?, disse Repellini.

Gomes já dirigiu o Paris-Saint Germain entre 1996 e 98, mas não enfrentou problemas, segundo o sindicalista, porque na época a legislação era mais branda.

Em 2003, Luiz Felipe Scolari esteve ameaçado de não assumir a seleção portuguesa por não ter vínculo com a Associação Brasileira de Treinadores de Futebol. A polêmica foi criada pelo presidente da Associação de Treinadores de Portugal, Jorge Pereira, com base em um regulamento da Fifa que exige a apresentação de carteira, certificado e carta de apresentação de sua respectiva associação nacional para qualquer técnico a ser contratado. Scolari teve que apresentar sua filiação ao Sindicato dos Treinadores Profissionais do Rio Grande do Sul e o diploma de professor de Educação Física, emitido em 1974, para provar que está apto a trabalhar como técnico pela lei brasileira. 

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