Para se transformar em Mister M, José Pedro dos Santos passou no rosto graxa e Liquid Paper, o “branquinho” para apagar os erros de caneta. Ficou bom, o pessoal gostou. O problema é que aquilo – a graxa e o corretivo – começou a queimar, incomodar, mas ele aguentou. No fim, valeu. Seu Vascão venceu o Santos, no primeiro jogo da decisão do Rio-São Paulo, em 1999. Nascia ali um dos personagens mais famosos da geral do Maracanã, mítico setor popular do estádio. E bota popular nisso. Tem gente que jura que pagou R$ 1 para ver jogo. Tal como os números de mágica do Mister M, a Geral desapareceu, engolida pelas reformas na nova arena. E já se passaram 10 anos.

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Mister M não sumiu. Tornou-se segurança do Vasco e ainda vai ao Maracanã. Sua sorte é que, como funcionário do clube, não precisa pagar os R$ 40, preço deste sábado para Fluminense x Joinville nos setores Norte e Sul, os espaços que se tornaram os herdeiros da geral como os mais baratos do estádio. “Esse é dinheiro de carne para mim e para minha família. É muito caro”, disse o segurança de 45 anos – 17 de Mister M, ele acrescenta.

Na geral, os torcedores assistiam aos jogos de pé, debaixo de sol e chuva, com radinho colado na orelha. A visão não era lá essas coisas, era no nível do pé do jogador. O setor tinha 13 degraus, perto do fosso. E por ali as câmeras de tevê passeavam para quebrar o tédio de jogos e paravam no Bin Laden, no Superman, Homem Aranha e Mister M.

A geral não era só o lugar de fantasia, no sentido de roupa vestida. Ao longo de 65 anos, ela acolheu o povão que nem se preocupava com closes da tevê. No início, nem existia tevê.

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Para Bernardo Buarque de Holanda, professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV, para falar da geral, é preciso voltar aos anos 1940. “Para atingir a capacidade de 150 mil pagantes, superando a marca internacional de um estádio na Escócia capaz de abrigar 139 mil espectadores, os arquitetos refizeram o plano inicial de 130 mil pessoas e retiraram a pista de atletismo da planta. Em seu lugar, foi liberado um espaço livre para 25 mil espectadores em pé, na altura do gramado”, explicou.

Depois de existir por mais de quatro décadas, o setor foi fechado por recomendação internacional nos anos 1990. Entre inúmeras aberturas e interdições por questões de segurança, a geral foi soterrada em 2005 pela modernidade, quase literalmente. O setor foi extinto para que ganhasse corpo o processo de modernização trazido pelas reformas para os Jogos Pan-Americanos de 2007. Ao todo, foram três reformas em 10 anos. Seus quase 30 mil lugares foram reduzidos para 18 mil com as cadeiras. A última reforma fez parte das leis impostas pela Fifa para a Copa do Mundo de 2014 que determinavam que ninguém podia assistir a jogos de futebol em pé.

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O “geraldino” Edgard da Costa Filho, tricolor que sente saudades de Rivellino, Paulo César Caju e Gil, aproveita o contato do Estado para pedir ajuda para uma campanha. “Eu queria que eles tirassem as cadeiras para a gente assistir ao jogo de pé. Será que não dá para dar uma força aí? No ano passado eu quase arrumei confusão porque não queria ficar sentado. O fim da geral foi terrível”, disse o torcedor, habitué do Maracanã desde 1969.

O fim da geral foi uma medida adotada em todas as novas arenas, mas pegou mesmo no Maracanã. Pegou tanto que os cineastas Pedro Asbeg e Renato Martins fizeram o filme “Geraldinos”, retratando os últimos 10 jogos no Maracanã antes da extinção da geral, lá em 2005, mas só finalizado agora. “O tempo fez bem ao filme. Ao longo desse período ele amadureceu e cresceu”, contou Asbeg.

Destaque na 30.ª edição do festival de documentários “É Tudo Verdade”, em São Paulo, o filme ouviu depoimentos de ex-jogadores como Romário, Zico, jornalistas e mais de 80 geraldinos. Em um dos trechos mais emocionantes, Zico conta que sempre teve vontade de pular no meio da galera. Sorte que tinha um fosso de três metros de largura, contou o rei do Maracanã.

O filme dá novas cores aos semblantes folclóricos agora escassos e que já haviam sido filmados pelas câmaras do Canal 100. “Tirar o pernil do Morumbi, limpar os entornos e acabar com a geral é negar a cultura do futebol”, disse Martins. Asbeg afirma que o valor dos ingressos limita, mas não é a única questão. “Tem jogo a cada três dias. Quem é que consegue ir? Jogos de péssima qualidade em estádios sem o mínimo conforto”, provocou.

Marcelo Frazão, diretor de Marketing do Consórcio Maracanã, grupo que administra o estádio desde 2013, diz que essa memória afetiva é apenas isso: uma memória afetiva. “Essa discussão sobre os geraldinos aconteceu há dez anos, no momento do Pan. Hoje vivemos um período de adaptação do público às novas instalações, mas os torcedores mudaram. Temos, por exemplo, o crescimento da presença feminina”, afirmou o executivo.

O geraldino Mister M também se adaptou aos novos tempos. Ele não usa mais graxa e branquinho e agora tem uma máscara profissional, com patrocinador e tudo (a marca vai no seu paletó). São R$ 1.500 por fora que dão uma ajuda e tanto para comprar a carne do mês.