Ele estava cursando Direito na Universidade Federal do Paraná até o ano passado. Só trancou porque estava sem condições financeiras de custear o deslocamento. Adora ler biografias, curte poesias, é fã de Castro Alves e atualmente está lendo ‘Crime e Castigo‘, de Dostoievski. Politizado e bem informado, sabe elogiar ou criticar qualquer político. Homem de corpo magro, cabelos grisalhos, a experiência da vida marcada nas rugas do rosto. Quem é ele?
Algum filósofo, empresário, professor, psicólogo ou antropólogo, sentado em um confortável sofá, dentro da sua biblioteca particular em casa? Ele é o Alceu Siqueira Ramos, 62 anos, um carrinheiro que vive da coleta de recicláveis e mora numa casinha muito simples dependurada num dos barrancos da Vila Pompéia, no Tatuquara.
Impossível não começar essa matéria sem ser poético. Isso porque Alceu circula pelas ruas de Curitiba com poesias, dos maiores poetas brasileiros, penduradas no seu carrinho de metal. “As pessoas passam a nos olhar com outros olhos. Porque quem trabalha como carrinheiro é confundido com marginal, drogado, alcoólatra. O povo parece quem nem vê a gente, ou nos olham com arrogância. Essa é a maneira que encontrei de me impor”, diz ele, que é tratado com mais respeito por aqueles que conseguem ler os trechos de poemas de Manuel Bandeira, Rui Barbosa ou Castro Alves.
Alceu ganha banners velhos e canetas de uma comerciante. Utiliza os materiais para escrever as poesias ou críticas à política. Pendura a arte no carrinho e sai trabalhar. Mas quase não é visto, pois prefere a madrugada. “Tinha uma época que eu tinha vergonha da minha situação [Alceu é soropositivo]. Então eu comecei a trabalhar de madrugada, para não ser visto. Levantava às 2h e saía. Voltava de manhã pra casa. Hoje eu já não tenho mais tanta vergonha. Mas continuo nesse horário porque me acostumei com ele”, diz Alceu.
Infância e livros
O carrinheiro teve uma infância sofrida. Rejeitado pela mãe – já tinha 20 anos quando descobriu que tinha mãe e passou esse tempo achando que era órfão -, viveu pulando de um orfanato a outro. Pelos lugares onde passou, seus professores sempre incentivaram a leitura. Alceu tomou gosto, leu muito. Mesmo com a sofrida vida nas ruas nas décadas seguintes (foi morador de rua, envolveu-se com coisas erradas, foi preso, foi e voltou da cadeia algumas vezes, casou, ficou viúvo, foi envenenado, baleado na cabeça …), lia jornais e livros que encontrava pelo caminho.
Tanto que estudou para o Enem com apostilas que encontrou no lixo. Tirou 850 na redação e entrou para o curso de Direito da UFPR. Nesse meio tempo, conseguiu emprego num mercado do Água Verde e conseguia estudar, trabalhar e sustentar uma senhora que retirou das ruas (que tem transtornos mentais, foi abandonada pelos filhos e Alceu prometeu cuidar dela até o fim da vida). Mas quando perdeu o emprego (quando as pessoas descobriram que ele tinha HIV e Alceu foi vítima de preconceito e perseguição), não conseguiu manter o ritmo de frequência na faculdade, pois não conseguia pagar o ônibus e alguns materiais de estudo. Trancou a faculdade no meio do ano passado. Se não fosse por isso, estaria se formando ao final deste ano.
Levando como pode
Alceu voltou a ser carrinheiro, pois precisava se manter de alguma forma e ter condições de cuidar da Maria, a ‘Mãe da Rua‘ que o acolheu no passado com café e pão, num dia que ele estava com muita fome, e hoje ele toma conta dela. Mas tem confiança de que as coisas vão melhorar.
“Tem crise? Então arregace as mangas e vá trabalhar. Cansei de entregar currículo. Disparei uns 50 nos últimos meses. Não fui chamado para nenhuma entrevista. Mas não desisti. Enquanto isso vou puxando carrinho. Eu não perdi as esperanças de que as coisas vão melhorar. Antigamente eu não tinha, mas hoje eu tenho sonhos, objetivos, vontade de viver. Eu ainda vou terminar a faculdade, vou tirar minha OAB. Nem que eu não chegue a exercer a profissão. Mas será minha grande conquista, minha vitória pendurar meu diploma ali na parede, só pra realizar meu sonho”, diz o carrinheiro poeta que, se conseguir, deseja atuar no Direito do Consumidor, Trabalhista e de Família.
“Criminal não. Não quero defender bandido, traficante, nem político safado”, ressalta Alceu, que é fã de Castro Alves, por suas poesias fortes, de sentido humanitário. A poesia que ele mais gosta do poeta? ‘Cruz na Estrada‘, que recita com brilhos no olhar. (GU)
Saudade dos irmãos
O carrinheiro Alceu Siqueira Ramos saiu de casa ainda bem jovem, no litoral, brigado com os irmãos. Impetuoso na juventude, disse que iria embora para nunca mais voltar. “Minha irmã mais velha, a Maria da Conceição, achava que eu não queria trabalhar. Mas lá em Paranaguá eu não via mais muitas opções de trabalho, de prosperar. Eu e ela brigávamos muito. Num das discussões, eu disse que iria a Curitiba tentar a vida, vencer e nunca mais voltaria ao seio da família”, conta Alceu, que hoje se arrepende do que falou.
As coisas não aconteceram da forma como o carrinheiro poeta imaginou. Arrumou alguns empregos na capital. Mas quando perdeu um deles, viu-se na rua, sem ter para onde ir. Morou em praças e terrenos baldios, conheceu de perto a marginalidade, se envolveu com coisas erradas. Até contrabandista virou, chegou a trazer milhões em mercadorias do Paraguai. Foi preso algumas vezes. Mesmo assim, ainda não estava arrependido do rompimento com os irmãos.
Mas os anos passaram e pesaram na consciência. “Quando a gente vai envelhecendo, vai revendo certos conceitos da vida. Hoje sinto vontade de ver meus irmãos, saber como está cada um”, diz ele, citando o nome dos oito irmãos: Gilmar (caçula), José, Antônio, Maria da Conceição (mais velha), Marli, Jurema, Tânia e Sueli.
Alceu tem um medo, uma angústia que carrega desde 2002, sem conseguir esclarecer se a notícia que ele ouviu era ou não com seu irmão Antônio. O carrinheiro costumava ouvir muito os noticiários policiais no rádio. Certo dia, em fevereiro de 2002, ouviu sobre um assassinato em Bocaiúva do Sul, município da Região Metropolitana de Curitiba. O nome da vítima era Antônio Siqueira Ramos. “Ouvindo o que diziam, as características, parecia ser meu irmão. Não sei se era um homônimo, ou se era meu irmão mesmo. É uma dúvida que tenho até hoje, me deixa agoniado. Pensei em ir até lá (Bocaiúva) pra tirar a dúvida. Mas acabei nunca indo. Preciso saber se era meu irmão Antônio”, fala.
Se você souber onde estão os irmãos do Antônio, nos ajude a encontrá-los e a promover este encontro! Informações podem ser passada pelo celular do Caçadores de Notícias, da , via telefonema ou Whatsapp: (41) 99683-9504.