Sítio Cercado

União vitoriosa

Escrito por Magaléa Mazziotti

Até o final de abril, as 3,2 mil famílias que há 27 anos se instalaram no primeiro assentamento do Paraná devem estar com a documentação de suas residências devidamente regularizadas. Pelo menos esta é a promessa da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) para os habitantes da maior ocupação da América Latina, que deu origem ao Xapinhal, por reunir moradores provenientes do Xaxim, Pinheirinho e Alto Boqueirão. A área está situada dentro do gigantesco bairro Sítio Cercado.

Foto: Ciciro Back
“Dentinho” é uma das lideranças à frente da Associação de Moradores Nossa Senhora de Luta. Foto: Ciciro Back

Coordenador do chamado Grupo 1, original do Xaxim, o primeiro acampamento a se instalar na área de 442 mil metros quadrados, o pedreiro Manoel Pereira Cruz, 55 anos, mais conhecido como “Dentinho”, é uma das lideranças à frente da Associação de Moradores Nossa Senhora de Luta, fundada na mesma época da ocupação. “Essa união e senso de organização do movimento é que garantiram todos os avanços, já que quando chegamos aqui não havia qualquer estrutura”, conta.

Ele cita que o grupo começou a se organizar seis anos antes do fatídico 9 de outubro de 1988, data da invasão. A organização contava com um grupo responsável pela coordenação do acampamento e outro de negociação da terra. “Cadastramos 500 famílias dos três bairros de origem de 1982 a 1988 e passamos anos esperando por uma solução da Cohab que não existiu, foi por isso que acabamos indos para a área”, defende. “As pessoas cadastradas não chegaram a ocupar nem metade da área que corresponde ao Xapinhal. Só que logo no primeiro ano de invasão, o total de famílias saltou para 3,2 mil”.

Manoel recorda que apenas as lideranças do movimento sabiam exatamente onde estava localizada a área e quando seria a invasão. “Ainda era uma a época de repressão, não dava para facilitar, tanto que meu apelido Dentinho veio para preservar a minha identidade e surgiu de uma reunião do grupo, quando meu dente pivô da frente caiu”, comenta. “A informação de que faríamos a ‘viagem‘, que é como tratávamos a ocupação, só foi dada à noite para o grupo, horas antes de cada um dos grupos deixarem seus bairros de origem”.

Para chamar atenção da sociedade para a causa da falta de moradia e não existir diferença entre os tipos de barracos, inicialmente todas as famílias usaram lonas para o acampamento. “Naquele primeiro ano, a chuva e o frio de Curitiba testaram a resistência e o espírito de luta do grupo”, lembra.
Em um segundo momento, o grupo passou a substituir as lonas por casas de madeira. Manoel conta que foi ajudando outras famílias do assentamento na construção das casas que desenvolveu o conhecimento necessário para a profissão de pedreiro. “De tanto participar dos mutirões e das situações de emergência acabei descobrindo a minha profissão, e nunca mais quis saber de outra ocupação, pois amo o que faço”, declara.

História sofrida

Outra forte liderança na Associação de Moradores da Nossa Senhora da Luta, Terezinha Maria de Godoi, 56 anos, ressalta que apesar de vitoriosa, a história do acampamento que, posteriormente, deu origem ao assentamento, é marcada por episódios profundamente tristes. “Mesmo sendo uma área bastante valorizada, quando chegamos aqui, isso era um banhado cheio de cobras e escorpiões. Não havia qualquer infraestrutura, tanto que perdemos nove crianças por doenças como diarreia logo no primeiro ano, em função da falta de água tratada e saneamento básico”, aponta.

Foto: Gerson Klaina
“Mesmo sendo uma área bastante valorizada, quando chegamos aqui, isso era um banhado cheio de cobras e escorpiões.” Foto: Gerson Klaina

Terezinha conta que toda essa estrutura precisou ser feita pelo grupo. “Precisamos construir as valetas, dar conta da luz, já que só tinham os postes sem fiação, mas vejo que essas dificuldades só foram superadas porque conseguimos manter a união e o senso de coletividade. Íamos buscar as sobras de alimentos na Ceasa para fazer sopa e tudo que um grupo recebia dividia com os demais”, revela. Ela também destaca que as mulheres do movimento tiveram um papel fundamental no acampamento. “Enquanto os homens saíam para trabalhar, as mulheres tinham a missão de ficar no acampamento e resistir a todas as ameaças e tentativas de nos retirar daqui”.

Os dois contam que os períodos mais críticos para a ocupação foram em 1989, quando o Ministério Público notificou o movimento com uma ação de despejo, e em 1990, quando um pelotão da polícia, amparado pela legislação, chegou ao Xapinhal para executar a ação de reintegração de posse. “Fizemos um cordão humano com as crianças na frente, as mulheres atrás e os homens por último, pois sabíamos que eles não iriam bater em crianças e mulheres”, afirma Terezinha.

A estratégia foi bem-sucedida e abriu caminho para o acordo de assentamento realizado em 1991 entre Xapinhal e Cohab, onde 1080 famílias passaram a pagar pela posse dos terrenos em um financiamento de 120 parcelas com valor irrisório, de R$ 28 ao mês. “Isso foi quitado e todas as residências recebem suas contas de água e luz. Só falta a escritura”, avalia.

Esperança de dias melhores

A Associação de Moradores Nossa Senhora Aparecida da Luta possui a mesma idade do acampamento e ainda gerencia todas as demandas da comunidade, que hoje conta com duas creches, unidade de saúde e Centro de Referência da Assitência Social (Cras). Toda terceira terça-feira do mês, a entidade entrega a 90 famílias cadastradas cerca de 10 quilos de produtos via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Tanto Terezinha quanto Manoel são catarinenses de origem, mas escolherem Curitiba para viver. “É uma cidade muito boa de viver, mesmo ainda dividida, já que os equipamentos urbanos e o acesso a cultura e lazer são concentrados nas áreas mais nobres”, avalia Manoel. “A expectativa é que isso mude, já que o problema das drogas que enfrentamos poderia ser minimizado com opções para os jovens. Aqui no Xapinhal, há anos esperamos por uma pista de skate, por exemplo”.

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Magaléa Mazziotti

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