Largos campos com parreiras de uva e uma estrada por onde todos os dias desciam filas de carroças rumo ao centro da cidade. Estas são algumas das primeiras imagens de Santa Felicidade, vistas por uma menina de apenas 8 anos, no fim da década de 40. Pouco mais de 60 anos depois, sem dúvida, a paisagem que salta aos olhos dessa mulher, no seu dia a dia, é completamente diferente. Entretanto, Flora Madalosso Bertolli, 75, não se apega ao saudosismo. Mesmo relembrando, com um certo brilho nos olhos, os tempos de criança no bairro, nitidamente se sente muito feliz e realizada por fazer parte das mudanças e do progresso que por ali aconteceram.
Ela é certamente mais um exemplo de como mulheres, com muita força de vontade, são as verdadeiras responsáveis pela fama e sucesso desta parte de Curitiba, que desde a época do tropeirismo no Paraná é parada obrigatória para descansar e apreciar boa comida. No passado distante, dona Felicidade Borges, a portuguesa que no século 19 doou parte dos terrenos que possuía na região para imigrantes italianos, foi determinante para o crescimento e fundamentação da personalidade do bairro, além de lhe emprestar o nome. Na história recente, dona Flora se destaca como a mulher por trás do maior empreendimento gastronômicos da cidade.
Nos mínimos detalhes
Quase não seria necessário dizer que um dos traços mais famosos de dona Flora, muito comentado entre moradores e frequentadores da região, é o fato de nunca ter se afastado do trabalho. Mas não se engane. Mesmo que de vez em quando ela se encontre sentada em uma das mesas dos grandiosos salões do restaurante, assinando documentos como uma executiva, dona Flora é encontrada com muito mais frequência na cozinha, “metendo a mão na massa” e coordenando o pessoal, ou pelos corredores, conversando com funcionários e clientes para checar se tudo está em ordem.
Segundo ela, é assim que acontece desde que tinha apenas três panelas, 18 pratos e alguns talheres no pequeno restaurante Flórida (atual Velho Madalosso), que tinha capacidade para apenas 24 lugares. O restaurante foi comprado pelo marido, Ademar Bertolli, mas boa parte do investimento foi feito pelo seu Antônio Domingos Madalosso, pai de Flora.
Deste modo, comandando os negócios, sem nunca deixar de lado a cozinha, que ela se destacou e virou celebridade curitibana. Sempre procurando tratar bem desde o governador até o varredor, como ela mesma diz, conquistou prestígio e realização.
Sempre envolvida com pessoas
O motivo que faz dona Flora levantar cedo, enfrentar um dia repleto de atividades e ir dormir tarde é o prazer de estar envolvida em todos os assuntos que importam, seja em seu comércio, seja nas atividades da região em que vive. Ela tem fôlego para agir além do ambiente estritamente profissional.
“Fiz muitos amigos no coral do bairro, que é um dos grupos musicais mais antigos de Curitiba. Também fui uma das fundadoras da Festa da Uva, isso há mais de 50 anos, e sempre gosto de participar. Criei filhos e netos e dei muita chance de emprego. Às vezes recebia gente que não sabia trabalhar, mas tinha determinação e eu gostava de vê-las aprender. Estar envolvida diretamente com as pessoas foi sempre o meu desejo”, disse dona Flora, enquanto tomava café em uma mesa a poucos metros de um grande quadro que ilustra a trajetória de sua família, pintado pelo mestre de Santa Felicidade, o pintor João Moro.
O quadro, que fica na entrada de seu maior restaurante, mostra a região da Itália onde a família começou, a vinda ao Brasil, com passagem pelo Rio Grande do Sul, e finalmente a chegada aos campos de uva, na área noroeste de Curitiba.
Perto da pintura, ainda no corredor da entrada principal do restaurante, existe um quadro com dezenas de fotografias em preto e branco, mostrando não somente atletas e artistas famosos, mas também presidentes, governadores, prefeitos e personalidades da sociedade que um dia sentaram naquelas mesas para apreciar um bom risoto com polenta e vinho. “O mais aplaudido foi Pelé e o primeiro presidente a fazer uma refeição aqui foi o Médici”, relembra dona Flora.
Mas ela fala do assunto não apenas para justificar a fama de seu empreendimento. “Como minha preocupação não é só com Santa Felicidade, mas com a minha cidade e a região em volta dela, sempre aproveito a visita dos governantes para reivindicar pessoalmente o que estamos precisando. Muitas vezes meus pedidos tiveram efeito e as pessoas que moram e trabalham aqui, assim como eu, viram as coisas acontecer”.
Nem pensar em parar!
É também pelos salões e mesas do restaurante que dona Flora exerce sua mais importante relação social. São cerca de 50 mil clientes por mês, número superior ao da população de muitas cidades. Interagindo com grande parte destas pessoas, ela fica sabendo das notícias, ouve comentários e dá alguns conselhos. “O segredo de uma vida bem-sucedida é se relacionar de maneira agradável com as pessoas. O caixão não tem gavetas. Nada se leva dessa vida. Por isso, não adianta se importar apenas com o lado financeiro e esquecer o humano”, afirma.
Uma das coisas que aprendeu com a idade foi entender o que os outros gostam. “As pessoas sempre querem novidade e por isso não se pode parar”. Com este espírito, ela encara os próximos passos para o futuro: contemplando e participando do que há de útil e bom no cotidiano, sem reclamar de dores e nem perder o gosto pelo progresso.
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