No interior de uma caverna de granito na Serra do Mar, em um caminho esquecido, foram encontradas marcas de um tempo que não existe mais. A descoberta, feita há cerca de três anos por um morador de Piraquara, na região de Curitiba, veio a público somente nas últimas semanas e incendiou o interesse de pesquisadores, entusiastas e curiosos.
Nos paredões da gruta esquecida existem vestígios de ocupações humanas que datam mais de três mil anos. No entanto, os artefatos mais intrigantes são do último século. São vidros de remédio, panelas de cobre, louças esmaltadas de fabricação sueca, facas, partes de botas e sapatos, ponteiras de metal e ferramentas usadas para perfurar pedras ou captar água.
Pesquisadores acreditam que perto da gruta, estabelecida entre o Caminho do Itupava e o antigo Caminho do Arraial, passava uma trilha usada por índios desde a antiguidade, depois por colonizadores na conquista da serra e, mais recentemente, pelos operários responsáveis pelo primeiro grande sistema de captação de água de Curitiba, em 1890, ou ainda por algum grupo de apoio na construção da estrada de ferro entre o Curitiba e o litoral.
Alguns indícios, porém, como um penico esmaltado, colocaram uma pulga atrás da orelha dos estudiosos, levantando a suspeita de que a caverna também foi usada entre 1930 e 1940, por fugitivos, seja por doença, como a lepra, ou por padecerem de algum outro problema de convívio social.
“Casa” do mato
Apesar de a erosão encobrir boa parte da trilha, é possível identificar o antigo caminho cortado no barranco. Mesmo sendo ‘mateiro‘ desde cedo, Claudemir Morais, 46 anos, não havia dado muita atenção a este detalhe. Era um dia de folga, em 2014, e ele havia saído com o irmão para caminhar pelos morros. Nascido em Campo Mourão, no interior do Paraná, o chacareiro vive e trabalha em Piraquara há 25 anos e conhece a região da serra melhor do que muito nativo.
“Armados de facão, levando sanduba e refri, começamos a caminhada. Em certo momento, parei para fazer um cigarro de palha e meu irmão continuou abrindo a trilha. Então ouvi ele gritando: “achei uma casa”. Era a gruta, cheia desses objetos muito antigos”, descreveu Claudemir.
A notícia chegou aos funcionários da Sanepar, que cuidam dos mananciais que abastecem de água metade da região de Curitiba. Os arqueólogos do Museu Paranaense ficaram sabendo do tesouro descoberto por Claudemir e no fim de setembro deste ano foi organizada uma expedição científica ao local, guiada pelo morador.
Apesar de ter estudado apenas até a segunda série do ensino fundamental e de ter certa dificuldade para ler, Claudemir sabe da importância de preservar a gruta. “Muitos caçadores e outros curiosos passaram pela caverna e vandalizaram o local. O tesouro era maior. Espero que a pesquisa feita pelo pessoal do museu ajude a entender quem viveu neste lugar e mantê-lo preservado”, afirmou o chacareiro-descobridor.
Mistério na gruta
O material da caverna de Piraquara foi levado para o Museu Paranaense, no bairro São Francisco, em Curitiba. Está sob a responsabilidade da equipe da arqueóloga Cláudia Inês Parellada, uma das maiores autoridades em arqueologia do Paraná. Desde 1990, ela lidera pesquisas fundamentais para compreensão dos grupos humanos que ocuparam nosso Estado.
Ela esteve à frente do grupo de onze pessoas, guiado por Claudemir, que fez a primeira expedição científica à gruta recém-descoberta na serra. “O local é muito rico e, além dos artigos que recolhemos, possui rastros de pinturas rupestres muito antigas, que datam milhares de anos atrás”, aponta Cláudia.
São vestígios de grupos indígenas como os Umbús, caçadores-coletores que viveram por aqui há cerca de 10 mil anos. Até mesmo de índios Itaraté-Tauquara, que habitaram a região entre três e quatro mil anos atrás. Em uma pesquisa liderada por Claudia nesta mesma região, entre 2004 e 2009, foram descobertos 22 sítios arqueológicos. São áreas que foram habitadas pelos mesmos grupos humanos.
Penico da dúvida
As características dos objetos recolhidos na caverna estão ajudando Cláudia a desvendar quem ocupou essa região durante último século. São dois grupos de materiais: o primeiro data o fim do século XIX, mais precisamente entre 1890 e 1900. Vão desde frascos de remédios a ferramentas para o trabalho em rocha.
“Nesta região ficam 17 nascentes exploradas para captação da água que ia parar no Reservatório do Carvalho e depois seguia para Curitiba. A caverna pode ter sido usada por estes operários ou mesmo por equipes de apoio à construção da ferrovia”, explica Claudia.
As louças suecas esmaltadas, entre elas um penico, são as que intrigam mais. Pela data de fabricação, a arqueóloga acredita que o dono destes materiais ocupou a caverna entre 1930 e 1940. “Acho pouco provável que seja de operários ou mesmo exploradores da serra. Neste ambiente rústico, dificilmente alguém levaria um penico, faria as necessidades na mata. Por isso, acreditamos que essa pessoa ou grupo, com estilo mais ermitão, poderia estar habitando a gruta para se esconder”, observa a arqueóloga.
Claudia acredita que o conjunto de louças suecas pode fazer parte de algum kit usado em instituições. “Pode ser de algum hospital, manicômio ou mesmo de algum explorador, mas a presença do penico deixa essa última hipótese mais fraca. Ainda é uma incógnita”, comenta.
Preservação
Segundo Cláudia, o material vai ficar alguns dias em quarentena, pra afastar a possibilidade de contaminação, então a pesquisa deve continuar. “A caverna estava vandalizada e alguns objetos, sujos com fezes humanas. O local pode ter bactérias e microrganismos adormecidos, potenciais causadores de dano à saúde humana. Vamos fazer o estudo com cautela. O local precisa ser preservado”, salienta a arqueóloga. Para moradores da região da caverna, medidas de proteção irão preservar não só o sítio arqueológico, mas as diversas fontes de água que existem nesta área.