Crochê feito por morador de rua de Curitiba é sucesso no bairro Hauer

Homem e morador de rua. O que você acha que o João Marcos Ribeiro dos Santos, 28 anos, faz para sobreviver? Guarda carros? Pede esmolas? Nada disso. O João sobrevive fazendo crochê, um trabalho mais bonito que o outro, que pode ser desde um simples tapete de banheiro até uma complexa cortina ou vestido. E ele está quase todos os dias em frente a uma loja de molduras e telas na Avenida Marechal Floriano Peixoto, no bairro Hauer, em Curitiba, na esquina com o terminal do Carmo, sonhando um dia ter sua própria loja de artesanatos.

O “João Crocheteiro”, como todos o conhecem, fugiu de casa aos 12 anos. Ele morava em São João Evangelista, no interior de Minas Gerais. Via muito o padrasto bater em sua mãe, Maria (a quem ele homenageia com uma tatuagem no braço). Um dia ele se revoltou e deu uma cadeirada  o padrasto, golpe tão forte que deixou o homem três meses sem andar. “Eu fui muito julgado por todos, por causa disto. E o pior é que minha mãe ainda o defendia”, lamentou.

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Quatro meses depois deste episódio, a mãe de João morreu de câncer de útero (sim, ela apanhou mesmo estando doente). O adolescente se revoltou e saiu de casa. Saiu com poucas roupas e o ensinamento de como fazer crochê, que aprendeu com dois tios e duas tias. O garoto cruzou de norte a sul do Brasil e aprendeu muitos outros artesanatos, com os quais sobrevivia por onde passava, mas sempre morando na rua. “Nunca briguei, nem fui preso. Não tenho passagens pela polícia, não bebo e nunca usei drogas”, disse o rapaz que, por morar na rua, conheceu muita gente “errada”, mas nunca se envolveu com as coisas ruins.

“Eu saí de casa só com o básico do crochê, que aprendi dos meus tios. Na rua eu convivi com muito povo de cadeia. Mas deles eu aprendi a pegar só as coisas boas. Eles aprendem artesanatos na prisão e na rua eu pedia que me ensinassem. Fui treinando e aperfeiçoando. Hoje eu olho um gráfico, faço o que tem nele e no dia seguinte nem preciso olhar de volta, porque aprendo e faço sozinho. Mesmo que seja algo que eu nunca tenha feito, o cliente pode trazer que eu faço. E pode ter certeza que vai sair do gosto do cliente”, afirma o ex-morador de rua, que depois de ter sua foto divulgada por uma funcionária da Prefeitura de Curitiba no Facebook (na conta pessoal dela), sua vida mudou.

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Fama

O crocheteiro já deu várias entrevistas, começou a ficar famoso e a vender bastante (no dia que entrevistamos o João, ele tinha ficado até 5h30 da manhã terminando uma encomenda). Ganhou um quartinho para dormir e até um celular usado, para se comunicar com os clientes. Há menos de duas semanas, ele dormia na marquise da loja de telas e molduras, onde ainda trabalha durante o dia, ponto que já está ficando conhecido pela clientela. Na entrevista à

Tribuna, João mostrou um centro de mesa redondo que fez. Com a habilidade de quem já pescou muito para comer, pelos lugares de mar por onde passou, jogou o artesanato igual uma tarrafa. O centro de mesa caiu perfeitamente esticado no chão, com João orgulhando-se não só da habilidade, mas em dizer que demorou pouco mais de uma hora para fazê-lo e que gastou só dois rolos e meio de fio. Sua preferência é trabalhar com barbante e lã, /4 e /6.

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Ficando o pé

Foi em Curitiba que João decidiu finalmente parar com as andanças. “Dizem que o curitibano é um povo fechado. Mas é um povo de coração enorme. Foi aqui que me acolheram, valorizaram meu trabalho e me deram uma chance de crescer”, disse ele, que está recebendo ajuda para conseguir tirar seus documentos. “Eu nunca nem peguei a minha certidão de nascimento na mão. A única coisa que eu tinha era minha carteirinha de escola, que me roubaram”, disse o artesão, que a única coisa que lembra é do nome da mãe, Maria, e de duas imãs, Simone e Carina, cujos nomes tatuou no braço. Ao todo, ele tinha nove irmãos, mas não lembra o nome dos outros e nunca mais viu a família. Mesmo assim, anseia um dia poder encontra-los.

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De norte a sul!

Felipe Rosa/Tribuna do Paraná
Felipe Rosa/Tribuna do Paraná

João Marcos Ribeiro dos Santos, 28 anos, o “João Crocheteiro”, já rodou o Brasil de norte a sul. Mas não é só crochê que ele faz para sobreviver. João aprendeu a mexer com madeira, folhas, papel, cipó, palha e muitos outros materiais. Orgulhoso, não gosta de pedir nada a ninguém. Nestes 16 anos de rua, sustentou-se só com artesanato.

Cada arte ele aprendeu em um lugar diferente, com pessoas diferentes. Uma das experiências mais marcantes foi viver, por dois anos e meio, em tribos indígenas no Amazonas, as aldeias Tucuruvi e Tucumim. Lá aprendeu a manusear palha e cipó. “O pajé Aré era muito paciente, me ensinou tudo. Um dia, participei de uma exposição de artesanatos no Amazonas. Ganhei o primeiro lugar”, contou o João, com humildade.

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Quando estava morando em Campo Grande (MS), conheceu dois americanos, também moradores de rua, de quem só recorda os apelidos: “Tico” e “Bina”. Na época, João tinha 21 anos e aprendeu com os estrangeiros a fazer molduras. Pegava um pedaço de madeira e em poucos minutos saía uma moldura (para quadros). Ele aprendeu a entalhar diversas coisas na madeira, desde nomes, até desenhos abstratos e reais.

Preconceito

João diz que já foi xingado de diversos nomes preconceituosos, por exercer um artesanato que, há algumas décadas, era tido como atividade exclusivamente feminina, o crochê. “Eu nunca gostei de botar infelicidade na minha vida. Já me chamaram um monte de ‘viado’. Teve uns guardas municipais aí que vieram me xingar disso, inclusive. Mas eu não ligo não. Eu dou risada, agradeço a eles e vou embora sorrindo. E quando vejo eles se aproximando de mim de novo, já os recebo com um sorriso. O povo diz que são os homens que mandam, que tem certas atividades que são de mulher e outras de homem. Veja quantas mulheres temos aí empresárias, executivas, pedreiras, policiais, motoristas de ônibus. As mulheres tomaram conta. Por quê homem não pode fazer atividade de mulher e a mulher não pode fazer atividade de homem? Isso não existe mais. Cada um faz o que tem habilidade”, filosofa o jovem crocheteiro.

“Quando eu estava no Rio, eu trabalhava na frente de um hotel chique, à beira mar. Tinha um homem que trabalhava como camareiro. Ele sempre descia e me trazia um café. Um dia, eu perguntei o que ele fazia. Quando ele me explicou, eu perguntei: ‘mas arrumar quarto de hotel não é coisa pra mulher?’. Aí ele me respondeu: ‘Mas e crochê, é coisa de homem?’. Aí que eu comecei a deixar esse preconceito de lado. Com ele eu também aprendi muitas outras coisas, inclusive ser humilde”, contou João, que um dia recebeu o convite pra almoçar na casa do camareiro. “Nunca tinha botado meu pé num morro, mas todo mundo já me conhecia lá. Os moleque tudo de fuzil na mão falando, lá na entrada: ó o tapeteiro subindo, deixa ele passar”, contou João.

Felipe Rosa/Tribuna do Paraná
Felipe Rosa/Tribuna do Paraná

Sonhos

O grande sonho de João, agora que ele escolheu Curitiba como a cidade que o abraçou, é montar uma loja de artesanatos e colocar nela todas as artes que aprendeu nestes 16 anos de rua. “Quero expor tudo o que eu aprendi, colocar tudo em prática. Quero representar nessa loja tudo o que eu sou, homenagear cada pessoa que me ensinou o que sei hoje”, afirma o artesão.

Mas enquanto João não tem a tão sonhada loja, atende ali mesmo na esquina da loja de telas e molduras da Dona Maria de Lourdes, na esquina do terminal do Carmo. Ele está sempre por ali, na calçada, e faz tudo o que o cliente pedir: tapetes, jogos de banheiro ou cozinha, capas de sofá, colchas, cortinas, toucas e até roupas. “Pode botar na lista. O que eu não souber, penso na hora e faço”, diz ele, que também tem um telefone para encomendas: 99513-4731.

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