Especial Curitiba 323 anos

Estrada do Encanamento

Escrito por Luisa Nucada

O apelido pegou, revela a professora aposentada Maria do Carmo Rodrigues Hyczy, 71 anos, por causa dos canos da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) que passavam pelo local levando água dos Mananciais da Serra até a caixa d’água do Alto da XV, na Praça das Nações. Ela cresceu na fazenda do avô paterno, em uma casa à beira da avenida, exatamente no ponto onde ficava a churrascaria Boi Gordo e onde hoje está o supermercado Muffato. ‘Ainda me pergunto como o pai acertou de construir naquele lugar. Quando abriram a estrada, antes de eu nascer, a casa ficou bem de frente pra rua‘, conta.

O avô, o filho de portugueses Herculano José Rodrigues, comprou a propriedade de 114 alqueires ‘antes da proclamação da República‘, e a batizou de Santo Antônio do Tarumã – a árvore tarumã, numerosa na região, também serviria de inspiração para nomear o bairro. As terras de Herculano faziam divisa com o Bairro Alto, com o Cajuru e com o lugar onde hoje é a Associação Atlética Banco do Brasil (AABB), de acordo com a neta. ‘O governo pagou indenização pra poder passar os canos da Sanepar. Quando abriram a rodovia que vai pra São Paulo (BR-116), por volta de 1940, ela cortou a fazenda também, e acabou com as laranjeiras e parreiras pelo caminho‘, relata.

Excursão pra povoar Curitiba

Foto: Átila Alberti
Sombra garantida ao longo de seus quase quatro quilômetros, ligando a capital e Pinhais e Piraquara. Foto: Átila Alberti
M aria do Carmo guarda datas e lembranças bem frescas na memória, e narra com segurança, sem vacilar, fatos de um passado que não viveu, mas conheceu através de histórias contadas pela parentada. Ela relata que o bisavô Antônio José Rodrigues, cofundador e primeiro tesoureiro do Clube Curitibano, veio de Portugal para o Brasil em busca do irmão gêmeo, que era padre e tinha se perdido por essas bandas. Ela narra a ‘excursão do velho Schaffer‘, que na segunda metade do século XIX foi à Europa buscar gente para povoar Curitiba. ‘Vieram os alemães Hauer, que lidavam com ferragens, e os Langer, que eram suíços ou austríacos, e montaram os relógios da Catedral e da Santa Casa. O velho Schaffer morreu na viagem e seu corpo foi jogado no mar.‘

 

Produtor de vinho doce

Roberto: fazenda recebeu o primeiro avião que pousou em Curitiba. Foto: Átila Alberti
Roberto: fazenda recebeu o primeiro avião que pousou em Curitiba. Foto: Átila Alberti
A  Estrada do Encanamento que Maria do Carmo Rodrigues Hyczy conheceu na infância era uma tranquilidade só. ‘A gente brincava de contar os carros que passavam na rua. Era uma estrada rural, de barro. Quando chovia não tinha ônibus, eles tentavam subir até a caixa d’água e patinavam tudo pra trás‘, lembra. ‘O aclive era muito grande‘, completa o marido, Roberto Hyczy, 80 anos. Mercado para fazer compras, só tinha no ‘alto do Cajuru‘. ‘O resto era na base do padeiro que vinha entregar pão e leite de carroça‘, diz a esposa.

Mercado para fazer compras, só tinha no ‘alto do Cajuru‘. O resto era na base do padeiro que vinha entregar pão e leite de carroça.”

Maria do Carmo Rodrigues Hyczy, professora aposentada que cresceu em casa da Avenida Victor Ferreira do Amaral.

Pela fazenda do avô, lembra ela, havia tonéis e barris de carvalho onde o pai, o comerciante Roberto José Rodrigues, produzia vinho. A bebida ficava ‘docinha‘ porque era feita com frutas maduras. ‘Era uma delícia, me criei tomando vinho. As uvas ficavam pegando sol e meu pai só colhia se sacudisse o cacho e os bagos caíssem no chão‘, diz, imitando o gesto com as mãos.

Os tempos da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) deixaram marcas na família Rodrigues. ‘O primeiro avião que pousou em Curitiba foi na fazenda. Daqui subiu e desceu muito avião de guerra‘, diz Roberto. Maria do Carmo conta que o governo queria construir uma pista de aterrissagem nas terras, e com receio de que elas fossem desapropriadas para virar aeroporto, a avó Thusnelda Langer Rodrigues, esposa de Herculano, já falecido então, doou um alqueire para a Cúria de Curitiba, que ergueu a Paróquia Nossa Senhora de Fátima.

Exposição do Café

A região deixou de ser pacata quando o governo comprou uma parte da propriedade para a Exposição Mundial do Café, de 1951, promovida pelo ex-governador Bento Munhoz da Rocha para celebrar o principal produto de exportação do Paraná. ‘Foi feito um local pra receber exposições, tinha uns barracões ovais que tem até hoje no Colégio Militar. Depois vieram os milicos e tomaram tudo‘, diz Maria do Carmo, em referência à Ditadura Militar (1964 – 1985). ‘O espaço da exposição foi dividido pro Colégio Militar, pro Jockey Club e pra Hípica. Depois, foi feito o Ginásio do Tarumã, naquela mesma área.‘

Com a exposição do café, a modernidade chegou à Victor Ferreira do Amaral, explica ela, porque teve início o loteamento. ‘A divisão em quadras e lotes foi em 1967, e aí o bairro começou a ser povoado. Tendo mais infraestrutura, veio posto de gasolina. O asfalto veio lá por 1974‘, lembra.

Ginásio do Tarumã é um dos pontos que vêm à lembrança quando se fala na avenida. Foto: Átila Alberti
Ginásio do Tarumã é um dos pontos que vêm à lembrança quando se fala na avenida. Foto: Átila Alberti

O local onde está situado o estádio do Pinheirão também fazia parte da fazenda, aponta. ‘Tem uma lei que diz que 10% de toda propriedade tem que ser praça pública. A família escolheu aquela parte do terreno para doar, e como a prefeitura precisava de uma área esportiva, repassou para a Federação (Paranaense de Futebol).‘

A neta de Herculano viveu de frente para a Estrada do Encanamento até trocar alianças com Roberto, em 1965. Então, se mudou para a casa onde criou as três filhas e vive até hoje, à Rua Heitor Valente, na parte que lhe coube da antiga fazenda Santo Antônio do Tarumã.

Os italianos Bigarella

Foto: Átila Alberti
Maria Eugênia: quando a Sanepar foi passar os canos, meu sogro fez um acordo com o governo. Foto: Átila Alberti
Foto: Átila Alberti
Lícia: meu marido ia de bicicleta para me namorar. Vim pra cá com 20 anos, a rua era de macadame. Foto: Átila Alberti
Quem foi Victor Ferreira do Amaral?

Nascido em 1863, na Lapa, Victor Ferreira do Amaral e Silva foi um médico ginecologista e obstetra que atuou na política e na educação. Exerceu os cargos de vice-governador do Paraná (1900 a 1904), deputado estadual e federal, e fundou a Universidade do Paraná em 1912 – que se tornaria Universidade Federal do Paraná (UFPR) – da qual foi reitor. Em 1914, fundou a primeira maternidade do estado, que hoje leva seu nome e faz parte do Complexo do Hospital de Clínicas. Morreu em Curitiba, em 1953, aos 90 anos.

Outra família que viveu de frente para a Estrada do Encanamento foi a Bigarella, que criava gado leiteiro. A propriedade dos descendentes de italianos ia de onde hoje é a Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB) até a Rua Maria Ficinsksa. A dona de casa Maria Eugênia Fontana Bigarella, 92 anos, nasceu em Piraquara e se mudou para a chácara no Tarumã após se casar com um dos três irmãos Bigarella. ‘Quando a Sanepar foi passar os canos, meu sogro fez um acordo com o governo. Cedeu o terreno e em troca recebeu três torneiras para os bois beberem água‘, lembra. Um de seus três filhos, Marco Bigarella, dá nome a uma rua do bairro.

Lícia Felicidade Favoretto Bigarella, 87 anos, foi outra moça de Piraquara desposada pelos Bigarella. ‘Meu marido ia de bicicleta me namorar. Vim pra cá com 20 anos, a rua era de macadame. A gente saía de carroça com 12 litros de nata dentro da sacola pra ir vender lá na Praça Tiradentes.‘

Os irmãos Pedro Ari Bigarella, autônomo, 53, e Luiz Carlos Bigarella, analista de sistemas, 61, filhos de Maria Eugênia, se lembram de quando a região ainda tinha aspecto rural. ‘Era só campo. A Victor Ferreira do Amaral tinha pista única e não existiam os conjuntos habitacionais, recorda Pedro.

Luiz Carlos conta que, a princípio, o asfalto ia só até a caixa d’água do Alto da XV. ‘Depois, aumentaram até o Detran, e pra ir pra Piraquara continuou tudo encascalhado. Quando chovia, o Rio Iraí alagava e Piraquara ficava isolada por causa das cavas de areia‘, diz. Só quando Pinhais se desenvolveu e se emancipou de Piraquara, aumentando o fluxo de pessoas para a capital, é que duplicaram a Victor Ferreira do Amaral até a divisa com o Rio Atuba, e pavimentaram o acesso à região metropolitana. ‘Aí começou o progresso, lá por 1975‘, diz.

Sobre o autor

Luisa Nucada

(41) 9683-9504