“Eles estão entre nós”. Se ao ler essa frase você automaticamente já pensa em extraterrestres, espíritos ou mortos, informamos que para essa série de reportagens ela será utilizada em referência aos vivos: ainda que por um triz. Na fila do banco, no carro ao lado em meio ao trânsito ou cruzando a rua no mesmo passo que o seu.

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Já parou pra pensar que entre todas as pessoas que cruzam seu caminho durante o dia, algumas já estiveram cara a cara com morte? A linda balconista da cafeteria, o gentil aposentado na fila da padoca ou o simpático estudante no ponto de ônibus. Curitibanos reais com experiências reais de superação a situações extremas que, certamente, ninguém desejaria enfrentar. Reveladas à Tribuna entre risos e lágrimas, histórias marcantes e ainda muito vivas na memória destes personagens mostram que, muitas vezes, a vida transforma pessoas comuns como eu e você em verdadeiros sobreviventes.

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Para abrir a série, a Tribuna escolheu a história do senhor Carlos Fernandes, morador do bairro Alto da XV. Aos 80 anos, o dentista aposentado considera-se afortunado em despertar a cada novo dia, desde que figurou a lista dos 12 sobreviventes de um desastre aéreo no qual 37 pessoas morreram.

Memória

Sexta-feira, 3 de maio de 1963. No bairro Mercês, a fria manhã de maio sinalizava os primeiros indícios do implacável inverno curitibano. De malas prontas para o Rio de Janeiro, o jovem ortodontista Carlos Fernandes, na época com 25 anos, revisava mentalmente os itens da pequena bagagem de mão e, vez ou outra, espiava o relógio para checar o horário. “Não posso perder o voo”, pensava. Não mesmo. Já que o motivo da viagem era nada menos que o seu próprio casamento, que aconteceria em menos de 24 horas, no estado carioca. Organizada na chácara da família da noiva, na região serrana do Rio, a festa já estava pronta. Só faltava o noivo chegar. “Meus pais, inclusive, foram antes para ajudar e levaram minhas roupas. Eu só fiquei responsável de levar as alianças”, lembra.

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Tudo pronto para a viagem, o jovem noivo chegou ao aeroporto Internacional Afonso Pena onde, no guichê da companhia aérea foi avisado de surpresa que seu voo para a cidade maravilhosa atrasaria. E muito. “A Cruzeiro do Sul informou que o voo agendado para as 10h, teve de ser reprogramado para as 17h e que eu viajaria numa aeronave maior um Convair e não um Douglas, para o qual eu tinha comprado a passagem”, contou. Compartilhado, o chá de aeroporto acabou rendendo amizades. “Fiquei conversando com um rapaz que, como eu, estava aguardando o avião. Ele se chamava Hamilton e também seguia para o Rio de Janeiro. Mal sabia eu que naquela mesma noite o Hamilton estaria morto”, lembrou.

Carlos Fernandes, dentista de Curitiba, sobreviveu a um desastre aéreo nos anos 1960. Foto: Felipe Rosa / Tribuna do Paraná

Apesar das horas de atraso, o embarque aconteceu tranquilamente. Após a decolagem, já há muitos pés de altura, o papo ainda corria solto entre os jovens viajantes. Foi quando Hamilton, sem mais nem menos, disparou: “se esse avião cair sabe que pra mim não tem problema? Não tenho nenhum pecado mortal para me arrepender”, brincou. O trajeto de Curitiba a São Paulo, onde o avião faria uma ponte aérea, seguiu sem problemas. “Chegamos no início da noite à capital paulista e descemos para esticar as pernas. Os comissários tinham avisado que o embarque em Congonhas ia demorar então ficamos, novamente, eu e Hamilton batendo um papo lá fora mas, quando chamaram para o reembarque, o avião estava com overbooking e não tinha mais lugar pra gente sentar. Eu não quis saber. Era meu casamento e eu não podia mais esperar”.

Realocados, Carlos e Hamilton foram posicionados em assentos distantes. “Me colocaram bem no meio do avião. Já o Hamilton sentou lá na frente, na primeira poltrona, logo atrás da cabine do piloto”, revela. Obrigado a permanecer na cabeceira da pista por conta do alto fluxo de aeronaves que sobrevoavam o aeroporto, o Convair 340-PPD Sirius já estava a oito minutos de portas fechadas, no solo, aguardando autorização da torre de controle para decolar. O tempo de espera foi suficiente para que Carlos fizesse uma nova amizade. Dessa vez com a senhora Ilza, de aproximadamente 40 anos, que sentava ao seu lado no avião. “Ela estava irritada com a demora e não acreditou quando o comissário explicou o motivo do atraso. ‘Esse avião está com algum problema’, lembro dela dizer”. Finalmente, às 19h40, o bimotor em potência máxima e portando 44 passageiros e 6 tripulantes iniciou o procedimento de decolagem que aconteceu sem nenhum problema. Com apenas um minuto de voo, no entanto, um aviso súbito do piloto pelo alto falante, deixou os ocupantes da aeronave perplexos: “senhoras e senhores informamos que realizaremos manobras de retorno ao aeroporto de Congonhas pois o avião apresentou um problema técnico”.

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De repente, bum!

Mesmo sem perceber que a aeronave perdia altitude rapidamente e sem pensar muito, Carlos teve tempo somente de apertar o cinto de segurança. “Nem deu pra entender o que estava acontecendo. Estava escuro lá fora e eu só senti o impacto de uma das asas contra algo no solo (que depois descobri se tratar de uma casa). Depois disso, bum. Tínhamos caído”, recorda. Parcialmente destruído e tomado pelo fogo, o avião caíra na Avenida Piassanguaba, bairro Jabaquara, em São Paulo, muito perto do aeroporto de Congonhas. “Olhei em volta e não conseguiu distinguir as pessoas. Não me lembro de ouvir gritos, choro, nem nada disso. Era só fogo. Ao meu lado, a dona Ilza estava tombada com a cabeça encostada na poltrona da frente”, lembra.

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Rapidamente o jovem dentista escapou da aeronave às pressas, pela parte da frente do avião, que se abrira completamente com o impacto, antes que as chamas o tomassem por completo. Queimado e muito machucado, Carlos ainda teve tempo de ajudar o único tripulante que restara vivo. O rapaz estava impossibilitado de andar devido a uma fratura exposta na perna. “Quando chegamos ao Hospital das Clínicas de São Paulo, de ambulância, aquilo estava um caos. A cidade parou por conta do acidente e os hospitais se organizavam para atender as vítimas que chegavam aos montes”, lembra. Enquanto aguardava transferência para o Hospital da Beneficência Portuguesa, Carlos se lembra de – ainda no HC – presenciar o momento no qual o corpo de bombeiros conduzia uma senhora de maca. Usando somente as roupas de baixo, a mulher gritava muito e tinha o corpo todo queimado. “Era a dona Ilza”, recorda Carlos.

Carlos Fernandes, dentista de Curitiba, sobreviveu a um desastre aéreo nos anos 1960. Foto: Felipe Rosa / Tribuna do Paraná

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, a família do dentista assistia a um jogo de futebol na televisão quando um comunicado urgente, informando sobre o acidente, interrompeu a programação nacional. “Quando viram que meu nome estava na lista das vítimas foi um desespero. Contaram que minha noiva, Edith, ficou tão aflita que chegou a desmaiar”, diz. Às pressas, a festa foi cancelada e parte da família correu para São Paulo atrás de Carlos, enquanto os familiares da noiva tratavam de avisar os convidados e declinar toda a programação na igreja.

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Internado na Unidade de Tratamento Intensivo, o jovem permaneceu por 21 dias até que recebesse alta. Nesse período, informações fragmentadas sobre o desastre chegavam aos poucos ao conhecimento do dentista como, por exemplo o número de mortos, que chegou a 37 de um total de 50 ocupantes – além das tristes notícias das mortes de Hamilton e Ilza. O motivo da queda também foi revelado: o sistema de alarmes da aeronave apresentara um problema e deixou de indicar o superaquecimento em um dos motores do avião que acabou pegando fogo nos primeiros minutos de voo.

Com um atraso de 22 dias, o casamento finalmente aconteceu com tudo igualzinho ao que os noivos tinham programado, ou quase. “As alianças foram perdidas no acidente e a companhia aérea teve de providenciar outras joias em substituição”, conta Carlos. Após a cerimônia, o casal mudou-se para Curitiba onde construiu a vida. Duas filhas e quatro netos depois, o tempo se encarregou de apagar os traumas do acidente. Porém, o medo de entrar em avião permaneceu durante toda a vida de Carlos que se aposentou da ortodontia e hoje é fotógrafo da natureza. “Recentemente fizeram uma exposição em Paris com várias fotos minhas e eu declinei o convite. As fotos foram mas eu fiquei”, brinca.

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Depois da tragédia, a lição. Sentindo-se agraciado por ter sobrevivido, Carlos encara a vida de forma diferente depois do acidente e aconselha: não se deve esperar o pior acontecer para viver intensamente. “A vida é maravilhosa e esse mundo é cheio de coisas lindas para ver e conhecer. Se eu pudesse dar um conselho aos leitores da Tribuna que chegaram até aqui eu diria que aproveitassem a cada dia. Seja grato à vida e aproveite a nova chance que cada dia te dá para viver”, finaliza.

Curiosidades

Entre os mortos no acidente, o deputado Miguel Bahury compunha a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que, na época, era responsável por investigar as causas do alto número de acidentes de avião que acontecia no Brasil, naquele período. Ele tinha, recentemente, perdido sua esposa que também morreu num acidente de avião.

O ator global Renato Consorte, famoso por interpretar padres na teledramaturgia, também estava no avião. Ele sobreviveu ao acidente porém teve de ser submetido a diversos procedimentos cirúrgicos e enxertos de pele em decorrência das queimaduras que sofreu na queda.

A Cruzeiro do Sul, segundo Carlos, não ofereceu nenhum ressarcimento aos passageiros, responsabilizando-se somente pelo pagamento das custas hospitalares das vítimas.

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