Ao sair de casa no dia 9 de maio, Bia*, 27, não imaginava que viveria o pior dia da sua vida. Sem saber que o policial militar Peterson da Mota Cordeiro, que conhecera por um aplicativo de relacionamento, era o criminoso que hoje está preso, acusado de matar a jovem Renata Larissa dos Santos, naquele mesmo mês, ela saiu com o rapaz com quem paquerava por mensagens de celular.
O resultado dessa história é um boletim de ocorrência de aproximadamente 4 páginas, nas quais Bia* relata à Polícia Civil os momentos de terror que viveu nas mãos de Peterson, que a estuprou brutalmente e ameaçou de morte dentro do próprio carro, no bairro Boqueirão, em Curitiba. Quando, por telefone, tocamos no assunto, a resposta veio curta: “desculpa, mas não quero falar sobre isso. Tenho medo”, disse a vítima à reportagem. Compreensível, já que desde o advento “Maria da Penha” – o número de inquéritos abertos relativos ao crime de feminicídio chega a 556 em todo o Estado, segundo o Ministério Público (MP-PR). Os dados preocupam e mostram que, ao contrário de Bia*, nem todas as vítimas saem vivas dessa história.
As estatísticas não mentem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial entre os países que mais registram casos de feminicídios em todo o mundo. Mesmo com o respaldo de leis como a “Maria da Penha”, segundo os órgãos oficiais, oito mulheres morrem por dia em decorrência do crime no país: proporção que, analisada sob a perspectiva de cada estado, impressiona ainda mais.
De acordo com o último “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, divulgado este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente no Paraná, 41 vítimas do sexo feminino morreram em decorrência do crime, entre 2016 e 2017. Encabeçando a lista de estados onde mais se mata mulheres, Minas Gerais somou 279 feminicídios no mesmo período e Pernambuco, 188.
Quando se fala em agressão física ou verbal o cálculo pode ser feito em segundos literalmente. A marcação é feita pelos “Relógios da Violência”, do Instituto Maria da Penha, que também registram em números, as perseguições, ameaças, espancamentos, estrangulamentos, assédios e outras situações envolvendo mulheres, a cada minuto no país. De acordo com a estatística, a cada dois segundos uma mulher sofre agressão no território nacional.
Não é frescura
Para quem acha que o assunto é “mimimi”, a resposta está na própria lei brasileira que, em 2017, incluiu o delito no artigo 121 do Código Penal (CP), inserindo-o no rol de “crimes hediondos”. Segundo o dispositivo, entende-se por “feminicídio” matar alguém pelo simples fato de ser mulher, ou seja, se a legislação precisou criar um artigo específico para esses casos é porque de fato o assunto merece atenção.
Atentas à questão, entidades públicas e autoridades, além da elaboração de novas leis protetivas, têm buscado soluções como a criação de delegacias e espaços reservados exclusivamente ao atendimento de vítimas do sexo feminino. A situação, no entanto, está longe de encontrar uma solução definitiva.
Todos alertas
Renata Larissa dos Santos, Tatiane Spitzner, Andriely Gonçalves. Todas jovens e bonitas, “com a vida toda pela frente”. Todas vítimas de crimes bárbaros cometidos pelos homens nos quais, em tese, confiavam, se relacionavam e no caso de Tatiane também amavam. No Paraná, os casos recentes de feminicídio despertaram a discussão do assunto em nível nacional e, diante das trágicas mortes, uma só pergunta permanece: até quando?
De acordo com a coordenadora geral da Casa da Mulher Brasileira de Curitiba, Sandra Praddo, a triste situação só vai mudar de fato, a partir da conscientização em nível social a respeito do assunto. “Tudo começa com a mudança de comportamento. Para isso é preciso que as autoridades invistam em políticas públicas que incentivem as vítimas a denunciarem. Por muito tempo as mulheres viveram caladas e amedrontadas, sem saber que se encontravam em situação de relacionamento abusivo. Isso tem que mudar”, destaca.
Para a coordenadora, chegou o tempo de revogar a “regra” que, por muito tempo, determinou que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. “É preciso parar de achar que não nos cabe interferir em algumas situações. Em briga de marido e mulher se mete a colher, sim”, finaliza.
Como saber?
Em matéria publicada pela Tribuna em janeiro, a mestre em psicologia social comunitária e membro do Núcleo de Diversidade de Gênero e Sexualidade do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, Roberta Baccarin, apontou alguns sinais que indicam o relacionamento abusivo.
Como identificar um relacionamento abusivo?
“Normalmente os abusos começam discretos. Mais simples e menos visíveis. Um dia ele discute, no outro eleva a voz, depois ofende. Até o dia que ele a segura com força ou chacoalha durante uma discussão, por exemplo. Por isso é importante que a mulher esteja atenta e avalie a situação. Será que vale a pena levar adiante?”, alerta.
Outros sinais como ciúme excessivo, censura a roupas ou contato com determinadas pessoas e proibição de frequência a alguns lugares também podem indicar que o relacionamento tende a se tornar tóxico.
Como ajudar uma mulher que sofre com um relacionamento abusivo?
De acordo com Roberta, esse é um dos pontos mais importantes a ser discutido em âmbito social. Ela concorda com Sandra no que diz respeito à intervenção em brigas de casal nas quais seja identificado risco à mulher. “No Brasil temos essa cultura de que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Tem que meter a colher sim. Enquanto mulheres temos que estar atentas aos relacionamentos das nossas amigas para podermos aconselhá-las. Devemos incentivar as mulheres a se perceberem em relacionamentos abusivos e conscientizá-las de que existe amparo pessoal e social”, diz.
A psicóloga alerta também para o comportamento virtual. “Na internet as pessoas se sentem protegidas pelo fato de não estarem ‘cara a cara’. Por isso, se acham livres para disseminar piadas e comentários de cunho machista. Isso tem que ter resposta. Tem que chamar a atenção sim”, ressalta.
Como identificar um feminicida?
Via de regra, comportamentos excessivamente machistas são um indicativo de que o homem apresente, também, traços de violência. Nem sempre é fácil, porém, identificar um feminicidade de primeira. Segundo a psicóloga, homens violentos nem sempre apresentam um comportamento agressivo socialmente. “Muitas vezes eles se apresentam como pessoas amorosas com os que os cercam, mas no relacionamento, performam a violência de gênero. Não se pode generalizar”, alerta.
Mudança
A Câmara dos Deputados aprovou ontem projeto que altera a Lei Maria da Penha e permite que delegados e policiais decidam, em caráter emergencial, sobre medidas protetivas para atender mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Pelo projeto, nos casos em que as medidas protetivas forem decididas por delegado ou policial, o juiz deverá ser comunicado no prazo máximo de 24 horas e decidirá em igual prazo sobre a manutenção ou a revisão da medida, comunicando a decisão ao Ministério Público.
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