Curitiba

Sobreviventes

O sírio Kaysar participa do BBB. Foto: Divulgação/Tv Globo
Escrito por Maria Luiza Piccoli

Novos ataques à Síria levantam incertezas entre refugiados que vivem no Brasil. Preocupação com quem ficou pra trás é grande entre “sírios-curitibanos”

Poucos dias depois do último ataque químico que vitimou 40 pessoas na província de Douma – perto de Damasco, na Síria três palavras definem o estado emocional dos refugiados e imigrantes que vivem em Curitiba e que, hoje, formam uma das maiores comunidades sírias no Brasil: tristeza, humilhação e revolta. Estados Unidos, França e Reino Unido agiram em retaliação na sexta-feira, sem autorização da Organização das Nações Unidas (ONU) sob o argumento de que o governo sírio chefiado pelo presidente Bashar al-Assad – estaria utilizando armas químicas no conflito contra os rebeldes que dominam a província na região de Ghouta Oriental.

Entender a atual situação no país não é tarefa fácil, já que além da disputa pelo monopólio do gás (principal motivo dos ataques internacionais ao território) os próprios conflitos civis internos incluem à história detalhes quase impossíveis – para nós que estamos longe – de compreender. Para quem viveu tudo isso de perto, no entanto, a dor da guerra fala alto. E muito. Principalmente quando amigos e parentes ainda correm risco de morrer.

O sírio Kaysar participa do BBB. Foto: Divulgação/Tv Globo
O sírio Kaysar participa do BBB. Foto: Divulgação/Tv Globo

Radicado em Curitiba desde 2014, Kaysar Dadour, 29, é conhecido no Brasil todo como um dos participantes de maior destaque da décima oitava edição do Big Brother Brasil (BBB). Famoso pelos trejeitos divertidos e pelos diálogos confusos, o sírio natural de Alepo, conquistou rapidamente o coração do público. Tanto é verdade que hoje o jovem disputa a final do reality ao lado da acreana Gleici e dos cariocas, Ana Clara e Ayrton, conhecidos como “Família Lima”. Se ganhar a bolada de R$1,5 milhões, o sírio já anunciou o que pretende fazer: trazer seus pais, George e Diane e a irmã Celine, de Alepo para o Brasil.

Conflito devastou o país e gerou uma a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. Foto: Ammar Suliman/Dimashqi Lens
Conflito devastou o país e gerou uma a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. Foto: Ammar Suliman/Dimashqi Lens

Dor da guerra

Fora os raros desabafos feitos às câmeras, o sofrimento do BBB em relação à situação na Síria e à distância de quase sete anos da família é quase imperceptível. Quem conhece o rapaz de perto, no entanto, afirma que, cara a cara não é bem assim. “Esse jeito divertido e piadista faz parte da personalidade dele, mas ao mesmo tempo é uma forma que ele encontrou de mascarar o sofrimento. Ele não gosta de falar sobre o que viveu na guerra. A única vez que se abriu comigo sobre isso, disse que viu muita gente morrer. Amigos, namorada. Isso mexe muito com ele”, afirma a empresária Stephanie Keller, 22, amiga pessoal e dona da empresa Tão Tão Distante Personagens, de Curitiba, na qual Kaysar trabalhou durante um tempo como personagem animador de festas e eventos infantis. “Com ele não tinha tempo ruim. Kaysar se sai bem tanto como super-herói como quanto príncipe de conto de fadas”, revela.

Tão distante de um conto de fadas, no entanto, o conflito que assola a Síria não é simples de ser explicado. Se, porém, você já tentou e não conseguiu entender o que realmente acontece por lá, talvez esse seja um bom começo.

Imagine que debaixo do solo do seu bairro exista um tesouro enterrado e que o mundo todo esteja atrás dele. Imagine que, por conta disso, cidades vizinhas e até outros países, que não tem nada a ver com a realidade da sua vizinhança, comecem uma verdadeira guerra uns contra os outros lançando bombas e usando todo o tipo de armamento bélico para intimidação, tendo como cenário as ruas que cercam a sua casa. Tudo por conta dos vários bilhões de dólares fixados no subsolo da região.

Foto: DonJohnstonLC/UN
Foto: DonJohnstonLC/UN

Dor e revolta

Localizado no epicentro da rota do gás que abastece 30% da Europa, o solo Sírio situado sobre a bacia do Mediterrâneo Oriental é a verdadeira joia da coroa quando o assunto é reserva de gás natural. Pelo país, passam importantes oleodutos ligando os principais “fornecedores” do combustível aos seus consumidores. Entre os personagens da história países da região como Irã, Qatar e Turquia, além de potências como Estados Unidos, Rússia, União Europeia, além de frentes radicais jihadistas – como o Estado Islâmico – protagonizam o papel de algozes que, por interesse econômico, devastam cidades e matam inocentes que nada tem a ver com a disputa pelo poder. Se, para o mundo, o país é considerado um dos mais estratégicos para a exploração comercial, para a população é quase como se estivesse no lugar errado, na hora errada.

Dados da ONG britânica, Observatório Sírio de Direitos Humanos, apontam que o número de mortos no conflito já bate a marca dos quatrocentos mil. Diante da matança, iniciou-se o fenômeno que hoje é considerado o maior movimento migratório da história contemporânea. Estima-se que, desde o início da guerra civil em 2011 – mais de 6 milhões de sírios tenham deixado o país. Segundo dados levantados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), 2.500 deles vivem no Brasil, o que equivale a 0,05% do total de migrantes espalhados pelo mundo.

“Não tem como viver em paz sabendo que a qualquer momento sua família pode sofrer um bombardeio”, diz o cônsul Abdo Dib Abage. Foto: Felipe Rosa
“Não tem como viver em paz sabendo que a qualquer momento sua família pode sofrer um bombardeio”, diz o cônsul Abdo Dib Abage. Foto: Felipe Rosa

Medo constante

Amr Hdiesa, 27, é um deles. Em Curitiba desde 2015, o rapaz natural de As-Swayda – dedica-se aos estudos para o mestrado em direito internacional que está prestes a concluir na Universidade Federal do Paraná. O que para qualquer um seria motivo de felicidade, para ele quase passa em branco diante da preocupação com familiares que moram em Damasco, capital da Síria. Ao contrário de seu conterrâneo Kaysar, Amr amarga, anônimo, a angústia pelos parentes que ainda estão lá, principalmente depois dos ataques da semana passada. “É humilhante o que estão fazendo com a nossa gente. Esse ataque foi totalmente infundado e contra todos os protocolos da ONU. Não existe critério. Só a ética da máfia. É revoltante”, desabafa.

Para nós, habitantes de terras tupiniquins que também enfrentamos nossos próprios problemas políticos – o conflito na Síria pode parecer distante demais. Quase a ponto de pouco nos interessarmos sobre o assunto. De fato, política e economicamente, o tema está longe de afetar diretamente a realidade no Brasil. A questão, porém, merece atenção, principalmente devido ao grande número de refugiados que buscam o país como alternativa para recomeçar a vida. “A questão merece ser pensada a partir do ponto de vista migratório que recai diretamente sobre o Brasil. Desde sempre nossas portas estiveram abertas aos refugiados e estabelecemos políticas amplas para recebê-los. É preciso que a questão seja analisada sob esse aspecto, considerando de que forma essas correntes podem impactar e contribuir para a sociedade”, pondera o professor do curso de História da Universidade Positivo, Tarsis Prado.

Sem paz

De fato, trata-se de uma questão de empatia. De acordo com o cônsul honorário da República Árabe da Síria no Paraná entre 1987 e 2017, Abdo Dib Abage, os impactos do conflito não se limitam às fronteiras do país, haja vista que a grande maioria dos refugiados deixou familiares para trás. “Isso gera estresse e muita insegurança nas comunidades de refugiados. Imagine você enfrentar todas as dificuldades de uma migração que é um processo burocrático e caro – e ainda viver sabendo que, a qualquer momento, sua família pode sofrer um bombardeio. Não tem como viver em paz”, ressalta.

Foto: Ammar Suliman/Dimashqi Lens
Foto: Ammar Suliman/Dimashqi Lens

Tanto Amr quanto Kaysar, sabem bem o que disse o cônsul. Amr, a princípio, hesitou em conversar com a Tribuna. Ao fim da entrevista, por telefone, se desculpou pela emoção ao falar sobre o assunto e preferiu não ser fotografado. Já Kaysar, não esconde o que sente. Às câmeras instaladas na casa do BBB, o rapaz chora, esbraveja, desabafa. Apesar das diferenças e sem nem se conhecerem, Amr e Kaysar compartilham as mesmas angústias. Na mente, a recente memória do horror impulsiona os jovens imigrantes a tentar de novo. A fazer diferente, cada um à sua maneira. Como diz o provérbio árabe: “A hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer”.

Sobre o autor

Maria Luiza Piccoli

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