Elvira causou quando estreou a primeira calça feminina em Curitiba

Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná.

Manhã de segunda-feira. Bairro Cristo-Rei, em Curitiba. Do fundo do corredor do apartamento ela veio devagarinho. Para a entrevista, perfume e ruge nas maças do rosto. Sobre a blusa de lã vermelha, colar de pérolas e um amuleto de Nossa Senhora . “Não precisava se arrumar tanto, Dona Elvira”, dissemos ao por os olhos pela primeira vez sobre a simpática velhinha.

Apesar do andador, postura intacta e – por trás da suposta fragilidade afiançada pelos 104 anos, de idade – , Elvira Kenski ostenta a mesma lucidez da juventude. Senhora de uma história marcante, a curitibana foi a primeira mulher a se formar em odontologia na capital.

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Defensora da causa feminina, a vovó também foi precursora na batalha pelos direitos das mulheres no Paraná. Para conhecer melhor esta importante figura, a Tribuna do Paraná passou a manhã inteira no apartamento da família Kenski e “cavocou” histórias emocionantes, ainda muito vivas na memória da aposentada.

Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná/Reprodução.
Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná/Reprodução.

“Naquele tempo, a Rua XV não era como hoje. A Rua XV era maravilhosa”, lembra dona Elvira ao recordar dos tempos nos quais o ponto era a principal “passarela social” da cidade. “Era lá que as famílias iam para se mostrar. Para as damas era a oportunidade perfeita para exibir as roupas novas. E foi para lá que eu fui, sozinha, estrear o primeiro par de calças compridas femininas que essa cidade viu”, revela. Considerado verdadeiro acinte, o ato foi criticado pela comunidade curitibana da época.

“Comprei calças em São Paulo, depois de participar de um congresso para dentistas de todo o Brasil. O carregamento tinha acabado de chegar de Paris e eu achei o máximo. Comprei duas para mim e uma para minha irmã. Eu não ligava para o que os outros pensavam” recorda.

Segunda entre quatro irmãos, Elvira se viu obrigada a desenvolver a coragem já desde a infância quando, ainda moradora do Centro da cidade, sofrera rejeição por parte das crianças do bairro devido à descendência polonesa. “Não me deixavam brincar e nem conversavam comigo. Eles diziam ‘não chamem a polaca’. E eu não conseguia entender. Eu falava português como todo mundo, era uma criança normal, conta.  Dividindo o tempo entre a escola polonesa e as atividades domésticas, Elvira também ajudava seu pai na oficina de móveis da família. Foi por conta disso que, aos 14 anos, ela foi “contratada” como aprendiz no consultório de um dentista especializado na fabricação de próteses dentárias.

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“Meu pai me mandou ir até o consultório cobrar uns móveis que ele tinha feito. Enquanto esperava o pagamento o protético pediu para que eu desse uma limpadinha dos utensílios de trabalho dele que estavam sobre a bancada. Tudo ficou tão limpinho que ele perguntou se eu tinha interesse de aprender um pouco sobre a profissão e acabei ficando”. Com o ‘salário’, a adolescente ajudou a irmã mais velha, Wladislawa, a pagar o curso de medicina no qual ingressou no final da década de 20. Mais tarde, seria sua vez de entrar na então “Universidade do Paraná” (atual UFPR), onde Elvira desempenharia um papel importante na turma composta por 11 alunos, da qual era a única garota. “Como eu já tinha experiência em odontologia acabava ajudando o resto da turma nas matérias. Mesmo com todo o preconceito da época, nunca fui desrespeitada na faculdade. Eles me pediam ajuda e prestavam atenção quando eu falava”, recorda.

Em prol das mulheres!

Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná/Reprodução.
Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná/Reprodução.

Finalmente formada, Elvira casou-se na década de 30, aos 28 anos, com o advogado catarinense Mieslau Napoleão Kenski, também descendente de poloneses. Foi também nesta época que ela deu início à abertura do seu próprio consultório odontológico, evento no qual precisou da autorização documental do marido, conforme legislação da época.

No exercício da profissão, porém, mal sabia Elvira que se depararia com mazelas mais graves do que as cáries. “Eu atendia muitas mulheres de fora, ricas, pertencentes a famílias tradicionais da cidade, jamais acreditaria nas confissões que eu ouvia na cadeira do consultório. Casos de abusos, violência doméstica e diversas outras injustiças que as mulheres da época enfrentavam caladas”, conta. Grande incentivadora da consciência e independência feminina, Elvira acabava exercendo também um papel terapêutico entre suas pacientes.

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Apesar de avessa ao termo “militância”, a vovó protagonizou verdadeiros embates frente à organizações sociais tradicionais de seu tempo. “Lembro de uma vez que um grupo de rapazes do declato acadêmico da universidade proferiu alguns xingamentos enquanto eu passava pela praça Santos Andrade, só pelo fato de eu defender as mulheres. Estava acontecendo um protesto e tinha cerca de 50 homens na frente do prédio histórico. Eu fui até o meio deles cobrar satisfação do porquê das palavras de ódio”, relembra. Contrária aos extremismos, Elvira lembra que a defesa pelos direitos das mulheres, além de mal vista, era mal interpretada pela sociedade masculina. Qualquer semelhança com os tempos atuais pode ser mera coincidência. “Os homens acham que mulheres como nós os odeiam e essa é a maior besteira que já inventaram. A única coisa que defendemos é a equiparação legal, social e profissional das mulheres aos homens, pondera.

Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná.
Foto: Denis Ferreira Neto/Tribuna do Paraná.

Passadas quase nove décadas e três gerações depois, a matriarca da família Kenski se orgulha por ter construído um legado de união e força moral entre os seus. “Se tem uma coisa que deixei muito certa para meus filhos, netos e bisnetos é o valor da família e da colaboração. Aqui não existem desavenças entre irmãos nem competição entre filhos. Todos se amam e se ajudam em todos os momentos da vida”, revela. Mesmo distante das acaloradas discussões políticas correntes, a vovozinha reconhece a sua contribuição à boa parte das conquistas usufruídas pelas mulheres da Curitiba de 2018. “Se hoje Curitiba ainda é considerada tradicional, naquela época era pior ainda. Mesmo assim, fiz questão de participar de protestos e manifestações em prol dos direitos das mulheres, como o sufrágio, por exemplo”, conta.

Ao fim da entrevista perguntamos à dona Elvira o segredo da visível juventude que conserva aos plenos 104 anos. A resposta veio em forma de versinho. “Você acha a vida linda? Gosta de agir e fazer planos? Sorri dos seus desenganos? Sabes sonhar ainda? És jovem apesar dos anos”.

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