Praça Rui Barbosa, centro de Curitiba. O tradicional largo margeado pelos pontos do transporte coletivo e pelo comércio é, segundo a Prefeitura de Curitiba, um dos lugares mais movimentados da cidade. Estima-se que diariamente 300 mil pessoas passem pela região da Matriz. Homens, mulheres, jovens e idosos. Trabalhadores, desocupados, gente de bem e também a bandidagem. Ambiente, sem dúvida, impróprio para deixar uma criança sozinha. Agora imagine deixar, em sã consciência, uma criança totalmente desacompanhada em uma praça pela qual circulam nada menos que 3 bilhões de pessoas diariamente. Saiba que essa praça existe e se chama “Internet”.

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À vista dos pais, o ambiente pode parecer inofensivo em um primeiro momento. Bastam alguns cliques, porém, para descobrir que grande parte dos conteúdos publicados na forma de divertidos desafios são, na realidade, nocivos e perigosos podendo inclusive acabar em tragédia. Jogo da asfixia, desafio do desodorante, desafio da canela, desafio do cronômetro, jogo do desmaio, e centenas de outros. De um lado, jovens youtubers em busca de audiência. Do outro, crianças e adolescentes comuns que, sem saber, colocam a vida em risco participando de brincadeiras mortais.

“Jogo da asfixia” ou “Choking Game”. Entre as mais populares, a brincadeira consiste basicamente em prender a respiração e, por meio de manobras mecânicas, interromper a passagem do ar ao cérebro, provocando tonturas e desmaio. Em pesquisa recente, realizada sob chancela da universidade francesa Paris Ouest e do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a psicóloga brasileira Juliana Guilheri, coletou dados que apontam que o número de vídeos nacionais, estimulando a prática, saltaram de 500 em 2012, para 15.000 em 2016. Números preocupantes, considerando a quantidade de usuários menores de idade que acessam a rede todos os dias no território nacional.

De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, 86% das crianças e adolescentes brasileiros, com idades entre 9 e 17 anos, possuem perfis ativos nas redes sociais. Em números, são mais de 24 milhões de menores com acesso livre e, praticamente desassistido à rede mundial. De acordo com Fabiana Vasconcelos, psicóloga clínica e fundadora do Instituto Dimi Cuida voltado à informação e prevenção dessas práticas o perigo reside justamente na aparência de segurança que a navegação representa.

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“Pelo fato dos acessos serem feitos dentro do ambiente doméstico, debaixo dos olhos dos responsáveis, muitos pais acabam deixando de prestar atenção ao que os filhos acessam e só ficam sabendo depois que o pior aconteceu”, explica.

Fatais

Jogo da asfixia, desafio do desodorante, desafio da canela, jogo do desmaio são alguns exemplos destas brincadeiras sem graça. Foto: Marco Charneski

Nos últimos 3 anos, o número de crianças queimadas, mutiladas, feridas e até mortas por conta das brincadeiras se tornou mais evidente. Como, porém, muitos casos não são registrados, não há dados oficiais que apontem exatamente o número de vítimas. Segundo o Instituto Dimi Cuida, entre 2014 e 2016, nove mortes foram oficialmente atribuídas aos jogos online. Hoje este número certamente é maior. No Paraná, a morte de um jovem de 21 anos, em 2016, na cidade de Apucarana, chamou a atenção. Ele inalou gás butano em resposta a um desafio online.

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Mais recentemente, em fevereiro desse ano, a pequena Adrielly Gonçalves, de 7 anos, entrou para a triste estatística depois de inalar desodorante. O caso foi registrado no estado de São Paulo, onde há pouco mais de um ano o jovem Gustavo Detter, 13, também morreu por participar de um desafio de não oxigenação.

Risco que atrai

Não é preciso que alguém perca a vida, no entanto, para constatar o perigo dessas brincadeiras. A estudante curitibana Elisa*, 14, aceitou participar do “jogo do desmaio”, proposto por um colega de escola. O caso aconteceu no final do ano passado, em uma escola particular, em Curitiba. “Aceitei por curiosidade. Me disseram que dava uma tontura e a gente apagava”, disse. Depois do passo a passo, o susto. “Não lembro como foi, mas acordei na enfermaria da escola. Eu não só desmaiei como tive convulsões e todo mundo ficou apavorado. A enfermeira disse que poderia ter sido muito mais grave”, afirma.

Segundo a neurofisiologista clínica, diretora do Centro de Epilepsia e Neurologia de Curitiba e professora da UFPR, Ana Chrystina Crippa, as consequências da não oxigenação cerebral são graves, pelo fato de botarem em risco órgãos nobres do organismo como rins, coração e cérebro.

“Diante de uma situação na qual o corpo se encontre impedido de receber oxigênio, a ação automática do corpo é tentar preservar esses três órgãos. A partir de três minutos sem ar, o cérebro já sofre lesões. A partir dos 6 minutos, morre”, explica. Outras práticas, como a inalação de determinados químicos pode comprometer o bombeamento de sangue ao organismo. “Além do risco de morte, impedir a circulação do oxigênio pode trazer sequelas graves à saúde”, diz.

Voltando à pesquisa feita pela psicóloga Juliana Guilheri, um questionário realizado com 1.395 estudantes, em 16 escolas do sudeste e centro-oeste do Brasil, apontou que 40% delas afirmaram ter participado de jogos similares. Dez por cento destas chegaram a desmaiar. “Virou problema de saúde pública. É preciso estabelecer políticas que incentivem o monitoramento, não apenas do tempo de acesso à Internet entre crianças e adolescentes, mas também do conteúdo que é acessado”, ressalta a neurofisiologista Ana Chrystina Crippa.

Para a psicóloga do centro de comunicação do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP), Rosiclea Rodrigues, um dos motivos que leva tantos jovens a aceitarem esses desafios é o sentimento “transgressor”, comum à idade. “Sem noção do perigo no qual se envolvem, os jovens topam qualquer coisa para serem aceitos pelo grupo, impressionar os amigos ou provarem a si mesmos que são capazes. Nem que, pra isso, tenham chegar aos limites”, explica.

De acordo com Fabiana Vasconcelos, do Instituto Dimi Cuida, o universo de desafios da Internet não está restrito aos jogos de asfixia. “Tem inúmeros desafios. Uns piores que outros como colocar a mão no formigueiro, tomar um copo de água fervendo de canudinho ou colocar álcool no corpo e acender um fósforo, para, em seguida, mergulhar na piscina. São situações de risco gravíssimo que passam despercebidas pelas gerações mais velhas, que não são nativas digitais”, diz.

Prevenção

“O conteúdo tem que fazer bem pra quem assiste. Trazer alegria, fazer rir, sem desafiar ou botar em risco a saúde”, diz o youtuber Felipe. Foto: Marco Charneski

Para a Fabiana, a principal forma de prevenção às brincadeiras de risco da Internet é o diálogo e o monitoramento do conteúdo acessado em casa. “A ideia de privacidade no Brasil está distorcida. É preciso sim, que os pais saibam exatamente o que tem sido visto pelos filhos na rede. É importante que os responsáveis estejam atentos aos ídolos das crianças, e ajudem a discernir se os heróis não são, na verdade, os vilões da história”, diz.

Entre as novas gerações de youtubers isso está mudando. O curitibano Felipe Calixto, de 17 anos, começou a publicar vídeos em seu canal em 2011. A plataforma, que já conta com mais de um milhão de seguidores, encontra no humor a principal fonte de curtidas. “Não é legal ter sucesso apelativo. O conteúdo tem que fazer bem pra quem assiste. Trazer alegria, fazer rir, sem desafiar ou botar em risco a saúde de ninguém. Sucesso só é legal se faz bem pra todo mundo”, argumenta.

Sinais

Para saber se seu filho anda participando de brincadeiras arriscadas, alguns sinais podem ser observados. Olhos vermelhos e irritados, por conta de hemorragias retinais – indicando supressão de ar, ou estrangulamento, pontos vermelhos ao redor das pálpebras e da região do peito, desorientação após sair do quarto ou passar muito tempo sozinho, dor de cabeça, odor excessivamente forte ou consumo de desodorante fora do comum.