A Justiça paranaense está julgando um caso que, de tão inédito, gerou dúvidas até em juízes e desembargadores sobre quem seria o responsável por julgar o caso em questão: a guarda compartilhada da cadela Bia, atualmente com seis anos. Desde que separaram, em 2017, as tutoras do animal, um casal homoafetivo, passaram a discutir quem ficaria com a cadelinha. A parte que estava impedida de ver o animal entrou na Justiça e, através de uma liminar, conseguiu passar o fim de semana inteiro com a Bia, depois de um ano e meio sem vê-la.
Este se tornou o primeiro processo em solo paranaense a discutir a guarda compartilhada de um pet.
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Conforme a parte que entrou na Justiça, uma autônoma de 54 anos, ela e sua ex-companheira, uma técnica de enfermagem de 47 anos, tiveram um relacionamento de cinco anos e meio. Neste meio tempo, adotaram a Bia, uma cadelinha mestiça de maltês com poodle. Quando o casal se separou, Bia estava com pouco mais de dois anos. Durante alguns meses as duas tutoras compartilhavam amigavelmente a cachorrinha. Bia era bastante mimada e tinha até padrinhos.
Mas a autônoma precisou viajar ao Rio Grande do Norte para resolver assuntos de família. Era para morar lá e o combinado informal era compartilhar a Bia a cada seis meses. Mas as coisas aconteceram diferentes e a autônoma voltou a morar em Curitiba um tempo depois. Neste retorno, afirma que os “combinados” ficaram diferentes e estava ficando difícil ver a Bia. Mesmo tendo sido feita a divisão dos bens do casal em cartório e sendo fixado a guarda compartilhada da cadelinha, a autônoma alega que sua ex-companheira estaria bloqueando o acesso ao animal e queria restringir as visitas a apenas uma vez por mês. Por isto a autônoma entrou com o processo na Justiça.
Emoção demais
Depois de um ano e meio sem ver a Bia, a autônoma conseguiu uma liminar e ganhou o direito de passar o último fim de semana inteiro com a cachorrinha. “É uma emoção indescritível. Senti muita paz, uma sublime paz. O que eu precisava era da minha filha. Ficar com ela, cheirar, beijar. Ela dormiu juntinho comigo, brincamos de bola, não nos desgrudamos. Onde eu ia na casa, ela vinha atrás”, descreve a autônoma. Até o padrinho a cadelinha reviu, através de uma chamada de vídeo, e lembrou do assobio que ele dava a chamando para passear.
A autônoma conta que a Bia, para ela, não é simplesmente um cachorro. Diz que a considera uma filha, criada desde bebê, visto que quando a adotaram, a cadelinha ainda era tão pequena que a “mamãe” acordava de duas em duas horas de madrugada para dar “papá”. “Quando eu acionei a Justiça pedindo a guarda dela, muita gente falou pra eu deixar isso de lado, pra adotar outro cãozinho. Me perguntavam se não era demais abrir processo por causa disso. Mas eu me apeguei a ela, cuidei como filha. Não posso abrir mão dela. O meu sentimento, como fica? O amor que tenho por ela, fica onde? As roupinhas, as fotos, as lembranças, a saudade, faço o que com tudo isso? Esse processo não é pra fazer picuinha com ninguém. É por amor. E eu vou lutar pela Bia até o fim da vida”, disse a autônoma, que três finais de semana por mês deverá percorrer 88 quilômetros (44 para ir e 44 para voltar) de Almirante Tamandaré a Piraquara (onde as partes moram atualmente) para buscar a cadelinha e passar os sábados e domingos com ela.
‘Confusão’ jurídica
O processo da guarda compartilhada da cadela Bia é tão inédito que a própria Justiça paranaense precisou “discutir” o assunto primeiro, para ver como e quem ia julgá-lo. Como o “objeto” da disputa é um animal de estimação, a Justiça não sabia se julgava o caso pelo Direito Cível (tratando o “objeto” como um “patrimônio” a ser dividido) ou pelo Direito de Família (porque existe o afeto dos pais/tutores em relação ao “objeto” da discussão). Em São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina já existem processos semelhantes e na maioria foi entendido o Direito de Família como o ideal para conduzir ações envolvendo pets.
Conforme a advogada Tatiane Pavani Dallarmi, que defende uma das partes, já existem ações semelhantes em São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina. No Paraná, porém, é o primeiro caso. Tanto é que quando ela entrou com a ação na Vara de Família e Sucessões de Pinhais, a juíza Marcia Regina Hernandez de Lima imediatamente encerrou o processo sem julgá-lo, pois tinha dúvidas se poderia aplicar a lei de família (voltada a crianças) a um caso envolvendo um cão.
Tatiane então entrou com uma apelação no Tribunal de Justiça no Paraná, para que os desembargadores da 12ª Câmara Cível analisassem e determinassem como conduzir o caso.
Seis meses depois de iniciarem a primeira análise, eles entenderam que nestes casos em que há o afeto das partes com o animal de estimação, aplica-se o Direito de Família. Desta forma, o processo voltou para a Vara de origem em Pinhais (Vara de Família e Sucessões).
Primeiro caso
“Bem possivelmente já existiram outros processos, em que as partes fizeram acordo na própria vara em relação à guarda do pet. Mas briga judicial, que sobe ao Tribunal de Justiça, creio que é o primeiro no Paraná”, diz Tatiane.
Depois deste entendimento, já houve uma primeira audiência conciliatória do processo, no qual a juíza Marcia de Lima determinou que a técnica de enfermagem entregasse Bia à autônoma por um fim de semana a cada 15 dias.
A autônoma foi buscar a cadelinha no dia 29 de junho, porém a técnica de enfermagem não entregou o animal, descumprindo a ordem judicial. A atitude foi comunicada à juíza, que modificou o regime de visitas. Ao invés de apenas um fim de semana por mês, a autônoma conquistou uma liminar que lhe dá o direito de ficar com Bia três fins de semana seguidos. A situação deverá perdurar assim por mais dois meses, quando uma nova audiência acontecerá em setembro.
“A juíza prefere saber como a Bia irá reagir às visitas, se ela vai se adaptar depois de um ano e meio afastada de uma das tutoras e depois ouvir as duas partes. Por isso haverá esse intervalo de dois meses até a próxima audiência”, explica Tatiane. Enquanto isso, será cumprida a liminar deferida até o julgamento de sentença.
Caso do gato Mingau
Na semana passada, a Justiça catarinense deu uma decisão parecida envolvendo o gato Mingau, que ficará 15 dias por mês com o tutor e os outros 15 com a tutora. A decisão é da juíza Marcia Krischke Matzenbacher, da Vara da Família da comarca de Itajaí. O casal adotou o gato, ainda filhote, enquanto estava junto e a disputa se deu logo após a separação. Conforme os autos, a mulher ficou com o animal e impediu as visitas e o contato do ex, o que gerou a ação judicial.
Embora o feito tenha como objeto a regulamentação de guarda e visitas de um gato, para a qual não há lei especifica no ordenamento jurídico vigente, a juíza decidiu de acordo com a analogia. Ou seja, utilizou o que diz a legislação sobre o conflito de guarda e visitas de filhos e aplicou neste caso específico.
A magistrada citou um julgamento recente do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. “Deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é uma questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional”. Para o ministro, “os animais de companhia são sencientes – dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, (e) também devem ter o seu bem-estar considerado”.
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