“Quanto custa?” pergunta que todo o mundo faz ao vendedor quando se interessa pelo produto. Isso quando não sabemos o preço decor, como acontece com o arroz e feijão de todos os dias. Algumas coisas, no entanto, são impossíveis de se colocar preço. Qual o valor em reais, por exemplo, da primeira risadinha de um bebê? Quanto custa ouvir a primeira palavra ensaiada por uma criança, ou presenciar o primeiro passinho desengonçado? Como tabelar tudo isso em moeda? Como tratar a vida como mercadoria?
Existem situações, entretanto, nas quais a vida – assim como acontece com os produtos – ganha prazo de validade. Nessas circunstâncias, o dinheiro pode sim ajudar, e muito. Portadores de Atrofia Muscular Espinhal (AME) sabem bem disso. A grave doença genética vem ganhando destaque não só pela raridade da patologia, mas principalmente pelo alto custo do tratamento pago na maioria dos casos com a ajuda de doações. O problema é que pelo mau exemplo de um casal catarinense, que desviou parte do valor arrecadado para custear gastos supérfluos como viagens e bens materiais, muita gente parou de contribuir em campanhas de ajuda e, com isso, o futuro de muitas crianças pode ficar ainda mais comprometido.
Doença grave
Rara e potencialmente fatal, a AME se manifesta logo nos primeiros meses de vida da criança. A doença neuromusuclar afeta o sistema nervoso central e reduz os movimentos do corpo gradativamente, podendo levar à morte caso não seja tratada. De acordo com o Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname), cerca de 50 crianças portadoras da doença recebem tratamento no Brasil. Em todos os casos a ajuda humanitária foi essencial, principalmente para a compra do medicamento Spinraza, cuja dose custa R$370 mil.
Na busca por ajuda, as redes sociais são o principal canal das famílias na divulgação de campanhas para doação e, em algumas situações, a comoção é tão grande que o valor solicitado é alcançado em pouquíssimo tempo.
Mau exemplo
Assim foi com o menino catarinense Jônatas Openkoski, de 2 anos, cujo caso gerou polêmica em todo o Brasil. A campanha que teve início em meados de junho de 2017, em três meses viralizou, arrecadando mais que o necessário ao tratamento da criança. O problema foi que, em setembro, os pais de Jônatas Renato e Aline Openkoski deixaram de declarar quanto estavam recebendo, e pior, levantaram suspeitas de estarem gastando os valores doados com supérfluos, como um carro de R$140 mil, telefones celulares, e viagens para o Nordeste. Com base em uma denúncia feita pela própria tia de Jônatas, em janeiro, o Ministério Público de Santa Catarina bloqueou as contas do casal, que batia a marca dos R$2 milhões. Na semana passada outra medida, mais extrema, foi cumprida pela Polícia Civil de Joinville, que por meio de um mandado, apreendeu o carro e um televisor de 50 polegadas, avaliado em R$6 mil na residência dos Openkoski.
O caso revoltou doadores que, nas próprias redes sociais, deixaram clara a indignação diante do acontecido. E não foi só quem investiu tempo e dinheiro em Jônatas que se sentiu lesionado. Outras famílias de pacientes de AME, que também dependiam de doações para custear os tratamentos foram prejudicadas, haja vista que muitos doadores deixaram de contribuir por receio de sofrerem o mesmo tipo de dano.
Jaqueline Baptistella, 18 anos, e o ex-garçom Carlos Eduardo Polhmann da Rocha, 18, são os pais da pequena Sophia – de 8 meses – que foi diagnosticada com AME no final do ano passado. Ambos estavam desempregados não tinham possibilidade de arcar com as despesas da UTI doméstica – essencial à sobrevida de Sophia nem dos medicamentos necessários. Ao todo, o valor giraria em torno de R$95 mil, isso sem falar no leite especial e no acompanhamento fisioterapêutico. A saída foi lançar campanhas no Facebook e em grupos de Whatsapp, solicitando ajuda. Dentro de poucos meses, a conta de Sophia já tinha recebido R$5 mil. O problema veio depois da repercussão do caso Jônatas. “As doações pararam de acontecer. As pessoas ficaram desconfiadas das campanhas e isso recaiu sobre quem mais precisa. Os pais do Jônatas plantaram, mas toda a comunidade AME está colhendo”, afirma.
Luta diária
De acordo com a diretora do Iname, Luma Mariane Barbosa, além de prejudicar as famílias dos portadores de AME que dependem das doações, o caso Jônatas desviou a atenção do público da questão que realmente importa: a conscientização da doença a nível civil. “Todo o mundo ficou chocado com esse caso, porque nós investimos e lutamos muito por essas crianças. São poucos casos no Brasil e por isso, todo mundo que tem filhos com AME acaba se conhecendo, se comunicando. A gente vira uma família. Além deles terem prejudicado muitas pessoas, acabaram resumindo o problema às doações quando existem questões mais profundas, como os critérios do governo para o fornecimento dos medicamentos e a batalha pelos diagnósticos precoces, fundamentais para o sucesso dos tratamentos”, afirma.
Para Jaqueline Baptistella e Carlos Eduardo resta, além do sentimento de injustiça, o constrangimento. “Fiz uma campanha mês passado no Facebook solicitando a quem pudesse que doasse vinte reais. Um dia fui pagar um lanche e, por coincidência, eu só tinha uma nota de R$20 na carteira. A pessoa que estava comigo me questionou se aquele dinheiro era da campanha e se eu estava desviando das doações. Me senti ofendida e envergonhada”, disse Jaqueline.
Crime
Segundo o advogado criminalista e professor da PUCPR, Luiz Gustavo Pujol, o caso merece atenção. De acordo com Pujol, o caso Jônatas pode parecer uma situação de estelionato os pais do menino obtiveram lucros ludibriando outras pessoas. Porém, o crime aproxima-se da “apropriação indébita”. “Para ser estelionato, a doença teria que ser inventada, nesse caso. Eles não mentiram, mas acabaram se aproveitando daquelas doações em benefício próprio. Por isso esse caso pode configurar apropriação indébita, já que o dinheiro foi obtido a partir de um fato verdadeiro e de boa fé de quem ajudou”, explica.
Quando a doação é feita, o titular do valor arrecadado é a própria criança sendo os pais responsáveis pela gestão do dinheiro. “Se os pais desviam essa propriedade, invertendo o título da posse, isso constitui apropriação indébita e, o lesionado não é o doador, mas a própria criança possuidora do valor doado”, ressalta.
Segundo o advogado, a repercussão penal em casos como esse existe, porém deve ser analisada caso a caso. “É difícil mensurar a punição sem entender os pormenores de cada caso mas, pode-se afirmar que quem pratica atos como esse está incorrendo num delito”, pondera. No artigo 89 da lei 13.146/2015 também conhecida como Estatuto da Pessoa Com Deficiência a pena para quem se apropria de bens, proventos, pensão, benefícios, remuneração, ou qualquer outro rendimento de pessoa com deficiência, é de reclusão de 1 a 4 anos.
Transparência
A saída para evitar casos assim, segundo Pujol, é a forma de condução das campanhas que deve ser feita de maneira transparente tanto por quem colabora, quando por quem é beneficiado. “Sempre vai ter um malandro. Não se pode confiar em tudo que se vê nas redes sociais e como em qualquer situação, é preciso ter certeza do destino do dinheiro empenhado. Já quem recebe tem o dever de criar mecanismos que informem quem contribuiu sobre os gastos que estão sendo feitos. É preciso haver confiança entre quem precisa e quem ajuda”, diz.
De acordo com a diretora do Iname, Luma Mariane Barbosa, a solidariedade não pode ser apagada pela irresponsabilidade em casos isolados. “Não é justo que a maioria pague o preço pela má conduta de poucos. Em muitos casos, as doações têm papel divisor entre a vida e a morte dos pacientes. Conheçam as famílias, saibam para quem estão doando, mas não deixem de estender a mão a quem não tem recursos pra pagar pela vida”, convoca Luma.
Quer ajudar a Sophia?
Dados Bancários:
Caixa Econômica Federal
Nome: Sophia Baptistella Polhmann
Agência: 3493
Operação: 013
Conta Poupança: 00008674-8
CPF: 133.846.469 – 83