“Por ciúmes, ele me deu um soco no rosto. Diziam que era minha culpa. Ele me seguiu na rua, quebrou meu carro, me tirou as chaves de casa e meu cartão do banco. Eu sempre escondendo aquele olho roxo. Sofri ameaça virtual. Ele jogou um copo de café quente nas minhas costas, ateou fogo nas minhas coisas. Dizia que ia me matar, que ia se matar, que ia matar nossa filha. Até o dia que apanhei tanto a ponto de perder meu bebê”.
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O compilado de fortes depoimentos verídicos foi transcrito do vídeo institucional da campanha “Vire a Página”, lançada na última quarta-feira pela Prefeitura de Curitiba por intermédio da Casa da Mulher Brasileira de Curitiba, com apoio da Patrulha Maria da Penha e da ONG Mais Marias. Com objetivo de combater a violência contra a mulher, a iniciativa viabilizada por meio de uma plataforma online reúne 19 histórias reais de superação, vividas por mulheres que passaram por unidades municipais de acolhida como a Casa da Mulher Brasileira e a Pousada de Maria, entidades de acolhimento que, juntas, ajudam milhares da famílias a recomeçarem a vida, longe da violência.
Manhã de terça-feira. A coordenadora geral da Casa da Mulher Brasileira, Sandra Praddo, recebe sorridente a nossa equipe de reportagem. Há um dia do lançamento do livro virtual cujo conteúdo ajudou a produzir, ela se vê orgulhosa. “De um lado da página o leitor verá a cópia do boletim de ocorrência registrado pela vítima no dia da denúncia. Do outro, o depoimento de como superou tudo aquilo e reconstruiu a vida. Mais que histórias de vitória, esses relatos servem para mostrar para muitas mulheres que existe saída do abuso. Que dá pra recomeçar a partir do nada. Basta querer”, afirmou.
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À frente da entidade desde a inauguração em junho de 2016, Sandra contabiliza o que chama de “cases de sucesso”, nos quais inúmeras mulheres que recorreram ao serviço da administração municipal conseguiram se recolocar no mercado de trabalho e, o mais importante, abandonar realidades de extrema violência física e psicológica. Vitória construída em equipe, entre as paredes de cor lilás da casa de acolhimento.
Desde a última visita da Tribuna à Casa da Mulher Brasileira, no ano passado, muita coisa mudou por lá. Uma das principais novidades é a instalação da Delegacia da Mulher no local desde março deste ano. Com isso, segundo Sandra, o número de atendimentos diários da entidade saltou de 70 para 130. “Essa novidade veio a facilitar a viabilização de alguns serviços dentro da casa como quando, por exemplo, se exige registro de boletim de ocorrência para emissão de medida protetiva de urgência. Além disso, com o serviço de delegacia, há garantia mais concreta de que, em alguns casos, o agressor permaneça detido”, disse Sandra.
Terceira unidade em funcionamento no Brasil, a sede da Casa da Mulher de Curitiba viabiliza o acesso a medidas de enfrentamento da violência e oferece serviços especializados como apoio psicossocial, delegacia, juizado, Ministério Público, Defensoria Pública e promoção de autonomia econômica. Com uma equipe de 35 profissionais incluindo psicólogos, advogados, motoristas e agentes da Guarda Municipal, a casa oferece atendimento 24h. Entre os serviços mais procurados estão a emissão de medidas protetivas que impeçam a aproximação física dos agressores e registro de Boletim de Ocorrência. Em alguns casos, a “Patrulha Maria da Penha”, realizada por equipes especializadas da Guarda Municipal, garante que as medidas protetivas estão sendo aplicadas por meio de visitas periódicas às residências.
Somente nos dois primeiros meses deste ano a entidade registrou mais de 2 mil atendimentos. No total, 29 mil mulheres já passaram pela casa desde a sua inauguração. Várias destas, além de terem contado com os serviços da Casa da Mulher Brasileira, foram acolhidas também pela Pousada de Maria, unidade de acolhimento institucional que, desde 1993, oferece abrigo provisório para mulheres “fugidas” de situações de violência doméstica.
Refúgio secreto
O endereço é sigiloso. Ao chegarmos à Pousada de Maria nos deparamos com uma casa ampla e bem iluminada. Cômodos limpos, decoração singela e, na cozinha, cheiro de almoço fresquinho saindo dos fogões.
Inaugurada há 26 anos, a Pousada de Maria é a primeira casa de acolhimento para mulheres do Brasil. O local foi idealizado pela primeira dama, Margarita Sansone ainda na primeira gestão do atual prefeito Rafael Greca (PMN), em tempos nos quais os direitos das mulheres estavam longe das pautas políticas. Destinada ao abrigo de mulheres em situação de violência doméstica, a Pousada de Maria tem capacidade de receber até 20 pessoas, incluindo os filhos das vítimas. Com apoio de equipes de educadores e assistentes sociais, o objetivo principal da instituição é promover a superação e o rompimento dos ciclos de violência, auxiliando as vítimas a reconstruírem suas vidas.
Conforme explicou a coordenadora da unidade, Adriana Castro Lopes, o local recebe mulheres de diversas faixas etárias e condições sociais que ali chegam encaminhadas pelos Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS), pela Casa da Mulher Brasileira. “Muitas chegam aqui só com a roupa do corpo. Amedrontadas, desamparadas, sem esperança. Após passarem por uma triagem junto à assistência social da casa, instalamos essas mulheres em alojamentos separados por família e iniciamos o trabalho de recuperação por meio de palestras, atividades socioeducativas, orientação financeira e capacitação profissional”, explica. Em média, as mulheres acolhidas podem permanecer no local por até 3 meses, recebendo , no local toda assistência psicossocial, além de itens de vestuário e alimentação.
Com uma equipe enxuta porém dedicada, a Pousada de Maria já atendeu, desde a sua inauguração, 7 mil famílias. Somente no ano passado, 230 pessoas incluindo mulheres e crianças passaram pelos quartos da casa. “Além da própria reconstrução pessoal, o fato dessas mulheres saírem daqui e conseguirem ressignificar suas vidas é o que torna esse serviço tão especial. Não se trata apenas dos fatores externos necessários à superação da violência, mas à própria reconstrução da identidade dessas mulheres que deixam de ser vítimas e descobrem que têm toda a capacidade de viverem bem, seguras e terem sucesso longe dos abusadores”, afirma a supervisora do núcleo regional da FAS no bairro portão, Maria Vanderleia Garcia Santos.
Foi o que aconteceu com Ana*, que para conversar com a reportagem da Tribuna pediu sigilo de sua identidade. Alojada na Pousada de Maria desde fevereiro com os dois filhos pequenos, a dona de casa conta que demorou um tempo para se adaptar à rotina da casa de acolhimento, totalmente diferente do que estava habituada. “Demorei um pouco para me acostumar a levantar cedo. Mesmo assim, qualquer coisa era melhor do que eu estava vivendo”, revelou.
Segura para contar um pouco da sua história, Ana relatou que, após 15 anos numa relação na qual era agredida física e psicologicamente, ela decidiu procurar ajuda antes que o pior acontecesse. “Ele bebia demais e um dia ele chegou completamente fora de si e veio direto me agredir. Aquele dia eu cheguei no meu limite”, conta. O ultimato foi preciso: “aproveita e bate na minha cara porque essa será a última vez que você vai me agredir”, disse Ana antes de procurar o CREAS da regional do bairro onde morava.
Acolhida pela equipe da Pousada de Maria, Ana afirma que os últimos 2 meses têm sido de paz para ela e seus filhos. “Aqui eu durmo tranquila. Sei que ele não pode fazer nada contra nós e mesmo depois que eu sair daqui ele não terá mais nenhuma chance, pois estamos protegidos legalmente. O mais importante disso tudo é o que aconteceu em mim mesma. Me sinto mais calma, mais tranquila, mais segura. Meu desejo é que, um dia, a equipe aqui da pousada olhe pra mim com orgulho e veja que graças a elas eu sobrevivi”, diz emocionada.
Dados nacionais
Segundo o IBGE, a cada ano, mais de um milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no país. Para um terço das vítimas, as agressões começam por volta dos 19 anos. De cada 100 brasileiras, pelo menos 25 foram ou são vítimas de violência doméstica. 70% dos agressores são maridos, companheiros ou ex-companheiros. Conheça a campanha “Vire a Página”.
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