Imagine você não conseguir embarcar num voo, por não ter como comprovar que você é a pessoa que está no documento de identidade que você apresentou à companhia aérea, porque a sua imagem é diferente da foto e do gênero descritos no documento? Ou então, ir ao banco sacar um cheque e não conseguir pelo mesmo motivo? Esses são apenas alguns exemplos do constrangimento que muitas pessoas transgênero sofriam, isso mesmo, sofriam. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de março deste ano, permitiu a elas mudar o prenome e o gênero na certidão de nascimento de forma simplificada, sem necessidade de longos e exaustivos processos judiciais.

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Rafaelly Wiest da Silva, 35 anos, sofreu muito com o preconceito. Era difícil exercer a sua cidadania, sem antes ter que abrir toda a sua história e expor que ela era uma mulher trans. Ela buscou a mudança do seu prenome (todos os nomes que vêm antes do sobrenome) pela primeira vez em 2012, através de um processo judicial que exigia uma infinidade de documentos, laudos e comprovações. “Naquela época, tinha gente que tinha uma documentação bem mais completa que a minha e não conseguia”, lamentou ela.

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No dia 29 de abril de 2015, Rafaelly foi convidada a dar uma palestra para os novos promotores de Justiça do Paraná. Neste dia, mostrou que apesar da palestrante ser a Rafaelly, a pessoa que estava no prédio era outra, de nome masculino, igual ao documento que ela apresentou na portaria. Um promotor se sensibilizou com a questão e a apresentou para a desembargadora Joeci Camargo, coordenadora do projeto Justiça nos Bairros.

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A magistrada entendeu a situação dos transgêneros e, na mesma hora, mudou o prenome e o gênero de Rafaelly em seu registro civil. A trans saiu de lá com uma nova certidão de nascimento. A partir de então, diz Rafaelly, o projeto Justiça nos Bairros mudou prenome e gênero nos documentos de 112 pessoas. “Mas a Joeci só fazia isso para transgêneros que não tinham nenhum tipo de pendência cível, criminal, financeira (nome no SPC), etc.”, contou Rafaelly. Nesta época, as pessoas que conseguiam chegar ao fim do processo judicial eram surpreendidas pelas decisões dos juízes, que aceitavam a mudança de prenome e gênero, mas com a condição de que a pessoa também fizesse a cirurgia de mudança de sexo.

Foto: Felipe Rosa/Tribuna do Paraná

Ou então, quando a pessoa não aceitava fazer a cirurgia, muitos juízes aceitavam mudar o prenome, mas não o gênero no registro civil. “Era constrangedor. Eu tive a sorte de conhecer uma desembargadora que fez isso por mim, sem necessidade de processo judicial. Mas e as outras pessoas trans que não tinham acesso a um magistrado?”, lamenta Rafaelly.

Lei

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A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 4.275-DF alterou o artigo 58 da lei 6.015/1973 (lei dos registros públicos), especificando que os transgêneros podem mudar o prenome e gênero diretamente no cartório, sem necessidade de processo judicial. Além de facilitar este processo, o STF também derrubou a exigência de que o transgênero não tivesse nenhuma certidão negativa. Agora, independente das certidões do transgênero serem positivas ou negativas, ele pode fazer a mudança nos documentos. Basta ir direto ao cartório com a lista de documentos exigidos e fazer a solicitação.

Felicidade e cidadania

A decisão do Supremo Tribunal Federal (Adin 4.275-DF) que permite a mudança de prenome e gênero no registro civil das pessoas trans entrou em vigor no mês de março. Mas só no mês de julho é que elas conseguiram de fato fazer a mudança. É porque somente em julho entrou em vigor uma normativa (Provimento 73/2018) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), regulamentando como deveria ser feita esta mudança.

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O estudante Felipe Batistelli, 21 anos, foi um dos primeiros beneficiados com a nova lei. “Na semana seguinte a Adin, já liguei pro cartório para saber o que precisava. Mas por quatro ou cinco meses, o cartório dizia que eu ainda não podia porque ainda não tinha normatização. Eu ficava numa angústia, com medo que cancelassem a lei. Alguns cartórios fizeram a mudança sem a normatização do CNJ. Mas em estados bem longe daqui. Curitiba foi uma das últimas cidades a fazer. Quando saiu a normativa, reuni todos os documentos e fui no cartório. Ainda fiquei angustiado porque eu queria ter um prenome composto e o cartório não queria aceitar.

Mas aí pesquisei a lei novamente, pesquisei o significado da palavra prenome no celular e mostrei pro cartorário. Ele aceitou, entendeu que o prenome é todo nome antes do sobrenome e consegui ter o que eu queria, Felipe Augusto. Saí do cartório no mesmo dia com a nova certidão de nascimento”, contou o jovem, que logo em seguida já começou a correr atrás da mudança nos outros documentos. “Gosto de ter meu CPF com o novo nome. Agora parece que eu existo”, analisa o estudante.

Infância

Felipe nasceu biologicamente uma mulher. Mas desde a infância percebia-se diferente em relação a outras pessoas. Foi levado a médicos, psicólogos, mas não entendia o que estava sentindo. Com 17 anos, viu na TV qual era o significado da palavra transgênero. “Aí eu entendi o que eu era, percebi que eu era um homem trans”, explicou o jovem. A família deu todo apoio e ajudou até a escolher o nome que mais combinava com o rapaz.

Foto: Felipe Rosa/Tribuna do Paraná

Entender o que se passava em seu corpo e sua mente ajudou Felipe a ser uma pessoa feliz, sem mais angústias, sem precisar se esquivar da família quando cortava o cabelo curto ou quando preferia usar roupas masculinas. Aliás, ele detestava as roupas femininas que tinha. O relacionamento dele melhorou muito com a família e as brigas deixaram de existir.

Mas encontrar-se dentro de si próprio não foi garantia de que o estudante se livrasse de constrangimentos. Começou e trancou duas faculdades, pois era constrangedor ter que explicar quem era aquela mulher cujo nome estava na chamada. Deixou até de fazer uma amizade, durante uma ação solidária da faculdade, quando um colega perguntou o seu nome. “Me enrolei tudo o que deu, até que falei um apelido. Até hoje aquele colega não sabe meu nome verdadeiro daquela época”, lamentou Felipe, que na escola sofreu muito com o preconceito e com apelidos como “machorra” e “mulher macho”. Isso o magoava demais e o fazia se isolar das pessoas.

Mas um dos piores constrangimentos foi uma abordagem policial que ele passou. Ele andava pela calçada quando uma viatura passou e os policiais decidiram revista-lo. “Os policiais olhavam minha identidade e ficavam confusos. Não sabiam se podiam me revistar ou não. Até que pediram para eu levantar a blusa, para olhar se eu era moça ou rapaz. Eu detestava usar sutiã. Ali foi um ápice do preconceito. Eu fiquei em estado de choque”, lamentou Felipe, que consultou médicos, psicólogos (para ter certeza da sua opção de gênero) e endocrinologistas, para começar um tratamento hormonal com testosterona e deixar para trás definitivamente os traços femininos. Até mesmo aplicativos de namoro usou para entender suas preferências.

“Marquei encontro com sete homens e uma mulher. Nos encontros com homens, eu me enrolava pra sair, vestia qualquer roupa. Até que no encontro com a mulher eu sentia vontade de colocar uma roupa legal, saí empolgado. Aí entendi um pouco mais o que eu era e do que gostava”, disse ele.

“Meu antigo nome era uma coisa triste, me sugava muita energia. Agora parece que o mundo ganhou cores, dá vontade de viver”, contou Felipe, que hoje vive sempre com um sorriso no rosto.

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