Trabalho animal

Foto: Átila Alberti
Foto: Átila Alberti

A lei existe, é de conhecimento público, mas no caminho entre a norma no papel e a aplicação dela no dia a dia das pessoas e da cidade há um abismo engolidor de regras. A lacuna é enorme: nela cabem a égua Cigana, o carrinho carregado com aproximadamente 200 quilos de material reciclável que ela puxa com dificuldade e o catador João Bento de Barros. Caminhando ao lado do animal, o homem diz que sustenta a família.

O uso de animais na tração de veículos e a exploração deles para essa finalidade foram proibidos em Curitiba por uma lei municipal em outubro de 2015. Na época, o prefeito era Gustavo Fruet (PDT) e a administração municipal tinha 90 dias para regulamentar a norma, o que não aconteceu até hoje. O texto, no entanto, é muito claro.

Foto: Átila Alberti
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“O problema é que quando a barriga ronca e a perna dói, não tem o que fazer”, justifica o catador de 63 anos. “Faço 64 dia 18 agora”, enfatiza. Somente puxando o carrinho, ele já conta 12 anos. “Desde o começo do mundo esse bicho é usado pra trabalhar e agora tem mais valor do que a gente”, reclama.

O que pesa na balança é o direito de cada um. “Tem gente que acha que os animais não têm direitos, mas têm”, ressalta Soraya Simon, presidente da Sociedade Protetora dos Animais de Curitiba (SPAC). Segundo ela, um equídeo precisa consumir uma média de 40 litros de água por dia. “Eles têm as necessidades deles e basta observar pra perceber que isso não é respeitado nesse tipo de situação. E o pior: geralmente são animais que já apresentam problemas de saúde e que sofrem ainda mais quando acabam obrigados a trabalhar”.

“Tá cuidadinha!”

Foto: Átila Alberti
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Só olhando é difícil precisar a idade da égua flagrada pela Tribuna. Pequena e branca, ela está com o catador há cinco anos, pelo que ele diz, e a pelagem encardida contrasta com as áreas do corpo pintadas de roxo. Violeta genciana. É um remédio bactericida, anti-inflamatório e que ajuda na cicatrização. “Ela fez uns machucados, mas já tratei, tá cuidadinha”, justifica o homem. Soraya, por outro lado, garante que a maior parte de ferimentos desse tipo vem de erros na colocação das rédeas e carroças. “Fazem de qualquer jeito, quando o certo seria fazer de jeito nenhum”.

Estudos apontam que os cavalos foram domesticados por humanos pela primeira vez há cerca de seis mil anos. “Eles são domados, mas é visível o incômodo quando são montados ou amarrados a estruturas como esses carrinhos”, pontua Soraya. Ela descarta que se trate de adestramento. “Obrigar um bicho a fazer algo é bem diferente de ensinar e recompensar com petiscos, por exemplo, porque nesses casos eles têm algum tipo de retorno prazeroso”.

Foto: Átila Alberti
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“Não tenho opção”

“Eu não estou roubando nada de ninguém. Eu mexia com porcos, mas tive que parar por problemas de saúde e agora faço isso aqui para viver. Olha minha perna. É uma dor só”. E quanto isso rende no fim do mês? “Ah, entre R$ 500 e R$ 600”. Questionado se tinha conhecimento da lei que proíbe o uso de animais em veículos de tração, o idoso desconversa. “Mas um vereador me disse que isso tá meio parado, que dá pra trabalhar”. E saiu andando quando a reportagem pediu o nome de quem havia passado essa orientação.

A esposa de João Bento também trabalha no ramo. “Ela fica no barracão e o meu filho também. Ele tem 17 anos e agora parou de estudar, mas não aguenta puxar carrinho, daí sobra pra mim”. Diariamente, o catador percorre de seis a oito quilômetros. Isso significa que a égua caminha ao menos seis mil metros por dia, faça chuva ou faça sol, puxando até 200 quilos.

Sem nenhuma renda além da obtida com os recicláveis, o idoso é só farrapo. As roupas – um dia claras – não ajudam muito a aplacar o calor na tarde de um inverno quente demais. E ele sua. “Vocês acham que eu queria isso aqui pra mim? Só que eu não tenho opção. Ninguém dá nada de graça”, sentencia.

Cadê a fiscalização?

A chamada “lei das carroças” também determina que os animais flagrados fazendo o transporte de cargas sejam retidos e que o órgão municipal competente seja acionado para recolher o bicho. O uso de força policial, caso necessário, também está previsto na norma. É vedada ainda a permanência deles, soltos ou atados por cordas ou outros meios, em vias ou logradouros públicos.

A fiscalização é tarefa da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, por meio da Rede de Defesa e Proteção Animal, com apoio de equipes da Secretaria Municipal de Saúde, Guarda Municipal e da Secretaria Municipal de Trânsito. Nos casos confirmados, o bicho deve ser apreendido encaminhado ao Centro de Controle de Zoonoses e Vetores, ao passo que o proprietário e/ou condutor estão sujeitos à punição por maus-tratos.

O problema, porém, é fiscalizar toda a cidade. Excetuando-se os episódios em que o poder público dá de cara com o problema, é praticamente impossível monitorar todas as vias da capital. São mais de 435 mil quilômetros quadrados. “Não tem como mesmo. É mais fácil quando alguém descobre onde o animal vive, onde ele fica amarrado, e denuncia. As pessoas veem”, admite a presidente da SPAC. “Houve um caso, por exemplo, de um rapaz que seguiu o cavalo e o dono de longe, viu para onde eles foram e avisou as autoridades. Isso é difícil, claro, nem todo mundo pode, mas nos bairros sempre tem alguém que sabe do que acontece e pode ajudar”, completa.

Foto: Átila Alberti
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Centro x bairros

Percorrendo as ruas de Curitiba nas últimas semanas, a Tribuna percebeu que, no Centro, os catadores de recicláveis seguem as normas mais à risca, enquanto nos bairros o desrespeito é flagrante. O flagrante da égua Cigana foi no Alto Boqueirão. Na zona norte da cidade, a reportagem também flagrou problemas: veículos visivelmente sobrecarregados com materiais recicláveis e desrespeitando as leis de trânsito. Não bastasse o risco de acidentes, as placas ainda estavam encobertas, o que caracteriza infração gravíssima, segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A penalidade em casos assim é a apreensão do veículo, multa de R$ 293,47 e sete pontos na carteira de habilitação.

Difícil localização

A prefeitura informa que a lei está em vigor e que a fiscalização é realizada, mas que há limitações em relação à cobertura integral do território da cidade. Quando algum caso chega ao conhecimento do poder público, geralmente via Rede de Defesa e Proteção Animal, equipes são deslocadas para apurar e agir conforme cada situação. A prefeitura esclarece que, por serem móveis, os carrinhos ou carroças são de difícil localização. Por isso, quanto mais o denunciante conseguir descobrir a respeito do proprietário ou tutor do animal, melhor.

A respeito dos veículos trafegando em descumprimento ao que as leis de trânsito determinam, a resposta da administração municipal é que “são carros particulares, não ligados ao projeto EcoCidadão e nem à coleta formal feita com caminhões. Esse é um problema que já está sendo mapeado”.

Paraná

De acordo com o deputado estadual Raska Rodrigues (PV), uma proposta de lei está em fase de elaboração pelo governo do Estado e deve ser encaminhada à Assembleia Legislativa em breve. “Se isso acontecer, vai ficar mais difícil driblar a fiscalização porque, hoje, além da crise que vem empurrando muita gente para a informalidade, há ainda as pessoas que vêm de cidades da Região Metropolitana de Curitiba (RMC), onde o uso de tração animal não é proibido, para fazer coleta na capital”.

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