Existem alguns textos interessantes engavetados, e que um dia foram publicados, mas que em razão do tempo e lugar não chegaram ao conhecimento de muitos leitores e curiosos com o mundo do vinho. Dessa forma, conclui que vale a pena resgatá-los, revitalizá-los por aqui, mantendo sua essência e suas curiosidades, e republicaá-los em meios às novas experiências.
O primeiro deles é sobre a imaginação/conhecimento versus experiência in loco… siga o texto e você entenderá.
Certa feita, em uma aula do curso de Sommelier, um professor indagou à turma sobre a casta Pinotage. Respondi, mais que de pronto: um varietal hibrido que surgiu do cruzamento de duas castas francesas, a Pinot Noir e a Hermitage, e foi originário do Centro de Pesquisas Botânicas da Universidade de Stellembosch, no sudoeste da África do Sul.
Tal professor retorquiu: quase perfeito, porém o segundo varietal chama-se Cinsault… e deu segmento à aula. Humildemente levantei uma das mãos, requerendo a tréplica. Ele parou, fazendo um sinal educado de cortejo, oportunizando-me defender minha teoria: Professor, penso que as duas respostas estão corretas, pois a Cinsaut é conhecida, pelos viticultores sul-africanos, como Hermitage.
Isso é muito comum no mundo do vinho, existe muita informação dispersa pelo mundo a ser absorvida. O que não se pode negar, e certamente não foi o caso em questão, é que subestimar enófilos nos dias de hoje é um erro imperdoável, quiçá sommeliers ou enólogos.
Pois bem, Hermitage, além do detalhe do intróito, é um importante vinho produzido no sudeste da França, em uma aldeia homônima, ao norte do Ródano, mais precisamente em uma encosta de 300 metros de altura.
Em uma das viagens enoculturais, eu e o sommelier Rogério Marcondes, a bordo de um motor-home, avançamos pela encosta granítica, margeando as parreiras agarradas ao aclive e, após vencermos um trajeto em forma de um “U” invertido, paramos o veículo lá no topo, em um declive acentuado, próximo à famosa capela construída pelo Cavaleiro Medieval das Cruzadas, Gaspard de Sterimberg, a qual foi restaurada e se mantém preservada graças à família Jaboulet, produtora do afamado vinho La Chapelle, em homenagem à capela.
Naquela época, o Cavaleiro Gaspar, assentando-se ali, construiu o santuário de pedra, obrigando-se a plantar vinhas da varietal Syrah, ao redor, para ter o que servir aos colegas, Oficiais e Sacerdotes das Cruzadas, que constantemente o visitavam. Seu vinho rapidamente tornou-se famoso pela região e muitos vinham para conhecê-lo.
Em fins do século XVIII e início do século XIX, o Hermitage já era considerado o vinho mais caro do mundo e muitos dos excepcionais Premier Cru Classés de Bordeaux, hermitageavam seus vinhos (inseriam uma pequena parcela do vinho nas suas barricas), pela cor profunda e riqueza que o vinho apresentava, embora muito negassem tal prática.
Uma das características mais marcantes e anômalas do Hermitage é a presença de um aroma salitroso, como o suor exalado de um corpo humano, e, além das frutas negras, o toque de couro, de fumaça e da expressão mais forte do seu terroir, como o aroma de terra úmida.
Parando em frente à capela, entende-se o porquê do Cavaleiro das Cruzadas escolher aquele local como sua ermida (Hermitage, em Francês, de onde surgiu o nome do vinho), após presenciar inúmeras mortes durante a batalha contra a seita Albigense que acabaram por lhe afetar a consciência, fazendo-o meditar e transformando-o em um eremita: lá de cima temos uma belíssima vista, sem igual.
Recordei-me de um amigo que afirmou não reconhecer nas viagens enológicas um valor prático, vez que o conhecimento encontra-se facilmente nos livros. Duvido que a sensação que sentimos, sendo banhados pelo sol generoso da região, a brisa cálida que nos fustigava, a imagem da capela que nos transmitia uma paz inenarrável, as parreiras quase vivas, como se nos observasse através dos olhos do cavaleiro, estivesse escrita em uma seqüência de folhas conexas. Era um silêncio que nos transmitia paz, o Crozes-Hermitage lá embaixo, ao redor, indiferente a nós… entendemos exatamente o porquê da escolha do local.
Sim, é um local abençoado. Se o Cavaleiro não resgatou sua consciência ali, certamente não o faria em outro lugar.
Até mesmo danificar a embreagem do motor-home para podermos sair em marcha à ré da encosta (única forma, caso você chegue ao topo), valeu a visita ao santuário La Chapelle.
Confira, vale a pena!
Até a próxima coluna… Cheers!